Especial – A nova geografia do clima

Especial – A nova geografia do clima

Em 1859, Charles Darwin causou polêmica ao sugerir que o ser humano e os macacos possuíam ancestrais comuns. Ele também defendeu que não é a mais forte nem a mais inteligente das espécies que sobreviverá, mas aquela com maior capacidade de resposta às mudanças. Décadas mais tarde, a origem da vida continua suscitando debates acalorados entre criacionistas e evolucionistas. No entanto, um novo tabu, não previsto por Darwin, diz respeito à vulnerabilidade dos seres humanos diante do aquecimento global.
A questão é que toda a capacidade cognitiva, tecnológica e política dos “mamíferos bípedes detentores de telencéfaloaltamente desenvolvidopolegar opositor” – na descrição do próprio Darwin – não tem sido suficiente para reverter o aumento preocupante das temperaturas da Terra. “Toda primeira etapa das negociações internacionais esteve e ainda está centrada na mitigação seguindo a lógica de que devemos equacionar as emissões, do contrário correremos atrás do prejuízo. O tamanho da bronca da adaptação tem a ver com as providências que serão ou não tomadas para reverter o processo de aquecimento do planeta”, explica Márcio Santilli, coordenador do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental (ISA).
No momento em que líderes mundiais adiam a negociação de um acordo global para estabilizar as emissões de gases de efeito estufa na 17ª Conferência do Clima em Copenhague, fica nítido o fracasso no campo da mitigação. O fato só reforça a urgência de acelerar o desenvolvimento de tecnologias e financiamento de ações de adaptação, uma vez que já o planeta já está à mercê de uma série de impactos irreversíveis. Aumento no nível dos oceanos, enchentes, furacões, tornados, secas persistentes, menor disponibilidade de recursos naturais, conflitos por água e alimentos são apenas alguns aspectos do prognóstico estabelecido pelos cientistas.
Para Fernando Almeida, presidente do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento (Cebds), a maior ameaça à vida humana na Terra é a  resistência em mudar comportamentos e não o aquecimento global em si.  “Há alguns anos acreditava em uma ruptura planejada, dentro do conceito de destruição criativa, a partir da atuação de lideranças comprometidas com a sustentabilidade no campo político e econômico. Hoje, cada vez mais acredito que a mudança se dará por imposição, a partir de eventos climáticos extremos, como secas, enchentes e furacões”, afirma.
Os planos de adaptação passam por questões técnicas, tais como melhorias nos sistemas de monitoramento metereológico, pesquisa e desenvolvimento de variedades de espécies agrícolas resistentes à seca. Compreendem também aspectos políticos e sociais, já que as comunidades mais vulneráveis são também as mais pobres e, portanto, as que menos contribuíram com o aumento das emissões globais.  Os negócios não sairão ilesas. À medida que as mudanças climáticas se tornam um aspecto cada vez mais relevante na gestão de riscos, as empresas são forçadas a assumir uma postura mais ativa no combate a esse fenômeno.  “Hoje, qualquer liderança, do setor privado ou público, que não tiver um lado subversivo para alterar a ordem prevalente do desenvolvimento da economia, é uma liderança ultrapassada. É necessário subverter porque não temos muito tempo”, ressalta Almeida.
Fenômeno histórico
Segundo o relatório “Impactos, vulnerabilidades e adaptação”, da UNFCCC, o aquecimento global trará uma extensa lista de impactos ambientais e socioeconômicos em áreas tão díspares quanto abastecimento de água, agricultura, segurança alimentar, saúde, biodiversidade e zonas costeiras. Mudanças no padrão de chuvas levarão, em conjunto com o derretimento das geleiras, causarão deficiências no suprimento de água e enchentes. O aumento das temperaturas resultará ainda em alterações nos calendários agrícolas, com efeitos para a segurança alimentar, além de contribuir para a disseminação de doenças como dengue e malária e potencializar a extinção (cientistas alertam que o aumento de 2ºC na temperatura pode levar a perda de 30% da biodiversidade). Melhorar esse prognóstico ainda é uma tarefa difícil, uma vez que a intervenção humana tem alterado os padrões climáticos globais, impedindo a projeção de cenários mais precisos.
A fim de se preparar para o futuro, Brian Fagan, autor do livro “O aquecimento global”, publicado no Brasil pela editora Larousse, propõe um olhar sobre o passado visando compreender como civilizações ancestrais responderam a esse fenômeno. “Precisamos entender como as sociedades antigas responderam às mudanças climáticas e como podemos responder a esse desafio hoje de maneira equivalente. Da mesma forma, também há muitas sociedades na Terra que continuam vivendo de forma tradicional. É importante aprender a partir da experiência dessas comunidades, que têm muito a nos ensinar sobre autossustentabilidade”, destaca.
O antropólogo lembra que, no último milênio, o clima mundial variou de frio a quente e, vice-versa, pelo menos nove vezes. Segundo ele, vive-se hoje um período denominado interglacial, caracterizado por tempos de calor. “Seguindo o curso natural da história, podemos esperar um retorno a temperaturas mais frias. Quando isso ocorrerá, não sabemos. Porém, uma coisa é certa: estamos vivendo em um mundo mais quente, o que traz sérias implicações para todos nós, sobretudo no que diz respeito a reservas de água”, ressalta.
Esse tipo de análise, no entanto, não diminui a dimensão de nosso desafio, considerado único pelo fato de ser a primeira vez que essas alterações são aceleradas pela ação humana. A perspectiva histórica revela que há condições de alterar a trajetória de desenvolvimento que levou aos desequilíbrios atuais, desde que exista disposição para rever comportamentos. “Não é nada razoável pensar que o mundo está no melhor estado de toda a sua história e que não há razões para mudar. Sem mudança, nenhuma evolução teria sido possível”, afirma Josef Reichholf, autor do livro “Breve história da natureza no último milênio”, publicado no Brasil pela editora Senac.
Definindo vulnerabilidades
Ainda que a maior ocorrência de eventos climáticos extremos seja uma das conseqüências do aquecimento global, é arriscado estabelecer correlações entre esse fenômeno e situações no presente.
José Marengo, pesquisador do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/INPE) relembra dois fatos recentes ocorridos na Amazônia: o extenso período de seca, em 2005, e as enchentes que assolaram a região no início de 2009. “Passar de um extremo seco para outro chuvoso em menos de quatro anos reforça que eventos desse tipo se tornarão mais freqüentes no futuro. Mas não podemos dizer que todos eles indicam que o clima já mudou ou que há um novo regime”, reforça.
No entanto, a complexidade de identificar vulnerabilidades não pode ser colocada como empecilho para postergar urgentes medidas de adaptação. Santilli, do ISA, defende que os esforços devem se concentrar nas regiões e populações mais suscetíveis a eventos climáticos extremos. “Se temos problemas graves de enchentes em Manaus é de se supor que esses problemas se tornarão mais graves no futuro. Mas não há nenhum mistério insondável limitando a fazer alguma coisa já. Podemos trabalhar em cima de realidades que já estão dadas em vez de fazer exercício de futurologia. O que não pode é ficar parado”, reforça.
Informação é um elemento-chave para qualquer medida de adaptação. Por isso, a Convenção Quadro da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC) ressalta a importância de estabelecer sistemas de monitoramento que analisem tanto parâmetros climáticos (temperaturas, chuvas e freqüência de eventos extremos) quanto outras áreas relacionadas (disponibilidade de recursos hídricos, agricultura, segurança alimentar, saúde, biodiversidade).
Marengo, do INPE, reforça que tal tarefa exige, portanto, a constituição de equipes multidisciplinares de pesquisa. “Quando se falava de vulnerabilidade no contexto de uma ciência natural como clima, havia certo receio porque o termo original vem das ciências sociais. Hoje, todo mundo está certo de que se trata de um conceito que pode ser aplicado em uma escala muito extensa”, afirma.
De acordo com o pesquisador, a rede de pesquisa em mudanças climáticas do INPE já integra profissionais de diferentes áreas do conhecimento. Meteorologistas, hidrologistas, geógrafos e cientistas sociais, assim como pesquisadores da medicina e agricultura já trabalham em conjunto na definição dessas vulnerabilidades. Dois estudos, recentemente publicados, resultam dessa parceria. Um deles é o relatório “Aquecimento global e a nova geografia da produção agrícola no Brasil”, realizado pela Embrapa, com o apoio dos pesquisadores do INPE. O outro levantamento, “Mudanças climáticas, migrações e saúde: cenários para o nordeste brasileiro – 2000-2020”, foi elaborado em conjunto com o Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Por meio da rede de pesquisas de mudanças climáticas, já foram detectadas vulnerabilidades em algumas regiões. “Existem algumas cidades onde há pesquisas, teses e dissertações sobre o tema, mas nada tem sido operacionalizado. Ainda falta um mapeamento nacional”, reforça.
<<Próxima>>

Inscreva-se em nossa newsletter e
receba tudo em primeira mão

Conteúdos relacionados

Entre em contato
1
Posso ajudar?