Cinema Social – Professor sofre

Cinema Social – Professor sofre

Em “Gloria” (1980), de John Cassavetes (1929-1989), a atriz Gena Rowlands – mulher e principal musa do cineasta, o grande ícone do cinema independente norte-americano – interpreta a personagem do título, mulher de personalidade forte, ex-amante de um gângster. Por uma dessas contingências que movem as histórias de cinema, ela se torna a guardiã involuntária de um menino, único sobrevivente do massacre de sua família. Motivo: seu pai, contador do mesmo gângster de que Gloria foi amante, morreu em uma limpeza de arquivo. Gloria passa a ter duas opções, nenhuma confortável: ou entrega o menino à sanha dos mafiosos, ou foge com ele e se transforma também em caça.
A personagem-título da produção brasileira “Verônica” enfrenta dilema semelhante em história que transporta as coordenadas básicas de “Gloria” para o cenário urbano brasileiro e atualiza seus elementos de acordo com a tecnologia disponível no século 21. O menino (Matheus de Sá) é filho de um contador de traficantes de drogas no Rio de Janeiro. Ciente de que corre perigo, o pai lhe entrega um pen drive com um vídeo em que policiais recebem propina do tráfico. Assassinados o contador e sua mulher, menino e pen drive vão parar nas mãos de Verônica (Andréa Beltrão), e aqui entra a novidade mais significativa do filme: ela é professora de ensino fundamental da rede pública.
Rara no cinema nacional, mas corriqueira na produção dos EUA e de países europeus, a conjugação é oportuna para quem almeja ter grande público: combinam-se as características de determinados gêneros populares e facilmente reconhecíveis pelo espectador médio – neste caso, o filme de aventura policial – com uma ambientação “realista”, de tintas verossímeis para o público, que tende a se deixar envolver com a obra porque reconhece nela os dados da realidade. Em última instância, a sensação é a de que o episódio poderia mesmo ter acontecido, talvez conosco ou com alguém muito próximo – e não há quem deixe de conhecer ou ter conhecido professoras de ensino fundamental.
A caracterização da personagem reveste o filme, involuntariamente, de um tom de denúncia. As dificuldades que Verônica enfrenta são comuns a milhares de outras mulheres do país. Ela trabalha muito, em condições às vezes impróprias, e se esvai física e mentalmente por causa disso; leva trabalho para casa, o que aumenta o desgaste e contribui para que negligencie a vida pessoal; o salário permite que sobreviva dignamente, mas não muito mais do que isso – a personagem mora em uma quitinete, em bairro popular do Rio, e não tem nem mesmo canais de TV paga, o que deixa o filho do contador estupefato, pois ele mora na favela e tem (“TV a gato”, como bem observa Verônica).
Se isso é o que o país oferece a profissionais encarregados pela formação básica de crianças, então vai mal, muito mal, o país. Do ponto de vista das escolhas, “Verônica” toma o cuidado de tratar bem da personagem sem, no entanto, transformá-la em heroína sobrenatural. Há uma distinção clara, por exemplo, entre a sua opção de vida e a do ex-marido, um policial (Marco Ricca) que aparece de maneira suspeita com R$ 3 mil reais em notas, para ajudá-la a tirar a mãe doente da rede pública de saúde (alguém reconhece a situação?), e se revela amigo dos envolvidos no caso com os traficantes. Um deles, por sinal, refere-se a ela como “professorazinha de merda”. Poucas vezes, no cinema brasileiro recente, uma frase dita por um personagem foi capaz de verbalizar, de maneira tão contundente, o que muitos pensam, mas não falam, e outros dizem não pensar, mas agem como se pensassem: quem se dedica a ser professor na rede pública brasileira é um “perdedor” em sociedade que premia “vencedores”. Corruptos e sonegadores de impostos, por exemplo.
Sérgio Rizzo, 43 anos, é jornalista, mestre em Artes e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, crítico da “Folha de S. Paulo” e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: [email protected]

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