Por Reinaldo Bulgarelli
Lá pelo início da década de 90, o tema da valorização da diversidade já estava presente no mundo empresarial, sobretudo nas organizações multinacionais. Ele aparecia no rodapé dos textos e práticas das empresas americanas e de algumas de origem europeia. Era comum ver os brasileiros que atuavam nessas corporações barrando a entrada do tema por aqui, com o argumento de que já éramos diversos e vivíamos em paz.
Diziam que a demografia interna das empresas era majoritariamente branca, masculina, sem deficiência, heterossexual e adulta, entre 25 e 35 anos, e uma questão de mérito, já que havia um problema social limitando as competências de todos que não fossem assim. Não se tratava de discriminação, mas de falta de educação, preparo e condições para ocupar lugares nos melhores postos de trabalho, principalmente os mais elevados na hierarquia.
O Brasil, pobrezinho, sofria de uma desigualdade social imensa, e esse argumento, aparentemente engajado, servia para barrar a entrada de programas de diversidade das matrizes das multinacionais. Essa postura de resistência atrasou, em décadas, as práticas empresariais brasileiras de valorização, promoção e gestão da diversidade.
Nessas “notas de rodapé”, havia alguma discussão sobre os benefícios de um ambiente com diversidade de ideias: tratava das almas, e não dos sujeitos concretos que habitavam o ambiente de trabalho. O importante eram as ideias e não se a pessoa era mulher ou homem, branca ou negra, com ou sem deficiência.
Quando o movimento social brasileiro passou a falar com mais intensidade da importância do acesso ao trabalho, da discriminação como fonte de prejuízos para o desenvolvimento do país, veio uma segunda onda nas empresas, que tratava a diversidade como um “balaio de gatos”. Não havia prioridades, segmentos ou situações que merecessem destaque, porque tudo cabia dentro da diversidade. Era uma forma de negar a sua importância e criar barreiras às demandas dos movimentos sociais.
As empresas não ficaram, evidentemente, imunes ao mito da democracia racial, que também envolvia outros temas, segmentos ou situações com sua falsa descrição de que tudo aqui era mestiço e convivia em harmonia. A não ser, claro, pelos problemas da pobreza, que vitimavam todos os que não tivessem o perfil idealizado da elite brasileira.
O grande salto para o tema da valorização da diversidade foi dado pelo movimento de responsabilidade social empresarial liderado pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Criado em 1998, seus primeiros documentos já tratavam o assunto, resignificando-o e abarcando as demandas legais ou legítimas da sociedade brasileira, seus movimentos sociais e a rica agenda de direitos humanos que também incluía o mundo do trabalho.
Com apoio de organizações da ONU, sobretudo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma agenda relacionada a mulheres, negros, pessoas com deficiência, com mais de 45 anos e jovens começou a entrar pelas portas e janelas das empresas por meio de indicadores de responsabilidade social empresarial e publicações. A primeira do Instituto Ethos, na série O que as empresas podem fazer, foi justamente sobre diversidade.
Empresas como BankBoston, Monsanto e IBM, que tratavam com maior atenção a valorização, promoção e gestão da diversidade, encontraram nesse Instituto um espaço para falar de suas práticas, articular-se com outras empresas, divulgar suas iniciativas e encorajar um movimento local. O BankBoston foi pioneiro nessa abordagem, com programas como o Geração XXI, uma ação afirmativa com jovens negros. O presidente da empresa, Geraldo Carbone, foi o primeiro a escrever um artigo sobre o tema na ótica de negócios sustentáveis e direitos humanos, publicado em 2000, pela revista Exame.
A partir de 2001, o Banco Real assumiu a valorização da diversidade em sua ampla agenda de responsabilidade social integrada às práticas de gestão e de relacionamento com todos os públicos ou stakeholders. Como referência no mercado, o banco acabou levando para o mundo empresarial o seu jeito de trabalhar o conceito e suas possibilidades de adição de valor às empresas.
Desde meados dos anos 2000, vivemos uma terceira fase, na qual as empresas acrescentam às demandas externas seu próprio interesse em valorizar, promover e realizar a gestão da diversidade. Além de uma agenda externa, de fora para dentro, diversidade passou a ser uma demanda interna, de dentro para fora, com maior vínculo com a identidade da organização (missão, visão, valores), políticas, estratégias e práticas de relacionamento com diferentes stakeholders, o que inclui produtos, serviços, atendimento e comunicação do que consideram a diversidade.
É um momento insipiente, pois convive com empresas ainda em fase de pré-responsabilidade social empresarial. Também dentro das organizações há diferentes fases convivendo. Existe uma tendência de descolar o tema dos princípios e práticas de responsabilidade social empresarial, o que pode significar o risco de atitudes meramente oportunistas, desconectadas do movimento social de direitos humanos e reféns das artimanhas das ideologias da discriminação.
Algumas vezes, vemos uma tentativa de desprezar, no discurso e na prática, as pessoas concretas para reavivar a “diversidade de ideias” como a única que importa, o que empobrece o movimento e oferece riscos ainda maiores. Há, por outro lado, avanços significativos, como a incorporação concomitante de questões da religião e dos direitos LGBT, uma vez que existe o risco da religião se tornar fonte de discriminação de homossexuais e transgêneros, ao mesmo tempo em que é um tema em si ao tratar da liberdade religiosa. Por outro lado, já não são poucas as empresas que cumprem a legislação de cotas para aprendizes e pessoas com deficiência, constituindo-se em referências para todas as demais ao demonstrar apreço pela diversidade, mais do que meras práticas de compliance ou respeito às leis.
A apropriação pelo movimento ambiental da agenda de desenvolvimento sustentável relegou temas relacionados a aspectos culturais e políticos, o que também vem sendo revertido. Também o movimento social pelos direitos humanos e representante de segmentos da população se aproximou do movimento empresarial de sustentabilidade e responsabilidade social, ampliando as discussões.
Exemplos disso são os cursos nos quais o tema da valorização da diversidade, relacionado às questões culturais do desenvolvimento sustentável, entre outros aspectos, são tratados. É o caso da UNICAMP, por exemplo, onde diversidade tem destaque como assunto que diz respeito à agenda interna e externa das organizações.
Fui mais do que testemunha ocular da história neste tema e neste movimento que procura trazer para a vida institucional das empresas o valor da diversidade e suas implicações práticas. Portanto, este balanço de meio do caminho está impregnado da minha visão e práticas no tempo e lugar onde vivo e busco contribuir.
Não se trata de ser otimista, porque não estou assistindo de fora, mas de dentro, com a mão na massa, comemorando cada avanço e atento a cada risco de retrocesso. No entanto, vejo que esta década será muito melhor para a valorização da diversidade do que as duas últimas. Ela passou a fazer sentido para gestores de diferentes áreas das empresas e não há mais como segurar um movimento que tem importância para os profissionais, os negócios e para o país.
Que os próximos vinte anos possam contar uma bela história em que a diferença não se torne mais motivo para desigualdades intoleráveis; mas para conexões nunca antes experimentadas pelas empresas.
Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação, autor do livro Diversos Somos Todos e coordenador de cursos no Programa de Educação Continuada da FGV/SP.
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