Leonardo Boff

Leonardo Boff

“Podemos ser mais com menos”. A frase de Leonardo Boff remete à ideia de ecoeficiência, mas não se limita a processos e produtos que demandam menos recursos naturais. Mais do que uma mudança comportamental, o teólogo propõe a integração da dimensão espiritual no debate da sustentabilidade. “Podemos produzir não para acumular riqueza, mas para ter o suficiente e decente para todos, em harmonia com os ciclos da natureza e com o sentido de solidariedade para com as gerações presentes e futuras”, sugere.
Em contraponto à profusão de termos vistosos que circulam no universo corporativo, como stakeholders, triple bottom line e accountability, Boff ressalta atitudes e valores simples, quase nunca devidamente lembrados, mas elementares para o desenvolvimento sustentável. “A sustentabilidade significa a garantia de que todos os seres têm as condições de viver, reproduzir-se e permanecer na natureza. Também diz respeito ao cuidado, que é a atitude subjetiva de renúncia a toda agressão e violação da natureza, de zelo em curar as chagas passadas e impedir as futuras”, destaca.
O interesse de Boff pela sustentabilidade é anterior á disseminação deste tema para além do restrito círculo de ambientalistas, um fenômeno típico dos anos 90 e, mais especificamente, dos últimos cinco anos. Surgiu, na verdade, com o seu ingresso na Ordem dos Frades Menores em 1959, quando aderiu à filosofia franciscana. Já na década de 80, Boff defendia a necessidade de integrar a conservação dos recursos naturais às discussões pela defesa dos direitos humanos, proposta que convergiu com a Teologia da Libertação.
O movimento, que ganhou força no então denominado Terceiro Mundo, sobretudo na América Latina, propunha a reflexão da situação de pobreza e exclusão social à luz da fé cristã. Para Boff, tratava-se de uma libertação não só dos pobres, mas do grande pobre que é o planeta Terra. “A democracia não pode incluir só os seres humanos como se convivessem autonomamente. Não somos os únicos portadores de direitos. Todos os seres vivos são.” Segundo o teólogo, a humanidade precisa articular um pacto social com um pacto natural, fazer justiça ecológica (tratando com respeito a natureza) e justiça social (tratando humanamente os seres humanos). “Sem esse acordo não haverá paz entre nós e paz com a Terra”, adverte.
Novos valores
Na década de 80, Boff dedicou-se inteiramente à difusão da Teologia da Libertação, deixando de lado interesses pessoais e até mesmo seus votos religiosos. A proximidade da proposta com os ideais socialistas assustou a Igreja Católica, levando os líderes do Vaticano a renegar o movimento, proscreve-lo sem dó nem piedade e submeter seus defensores a uma dura inquisição. O rompimento efetivo se deu quando, em 1984, Boff passou por um interrogatório conduzido por Joseph Ratzinger, hoje papa Bento XVI, que culminou com a condenação do teólogo a um ano de “silêncio obsequioso”, em razão de suas teses ligadas à Teologia da Libertação.
Já a sua conversão para a sustentabilidade, essa sim foi definitiva. Boff participou das discussões da Comissão para o Meio Ambiente da ONU, coordenada por Gro Bruntland, para elaboração do relatório Nosso Futuro Comum. O documento, anunciado em 1987, apresentou para o mundo o conceito de desenvolvimento sustentável, termo que na opinião de Boff apresenta limitações.
Ao participar do processo de construção da Carta da Terra, o teólogo chegou à conclusão, junto com lideranças importantes como Mikhail Gorbachev, Rockfeller e Maurice Strong, de que era mais efetivo falar de um modo sustentável de viver. “No começo assumiu-se o lema geral do desenvolvimento sustentável, mas a discussão mostrou que o termo é intrinsecamente insustentável. Preferiu-se falar em modo sustentável de viver. Na reunião Rio-5 da ONU, fiz uma intervenção contundente contra as falácias da expressão que causou grande discussão e também a adesão de muitos”, afirma Boff.
Ser sustentável
Como educador, Boff percorreu os centros acadêmicos de todo o mundo, ministrando aulas de Teologia e Espiritualidade em universidades como a de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espanha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heidelberg (Alemanha).
Tantos anos de estrada, na condição de pregador, mostraram que a educação continua sendo o melhor caminho para a mudança de paradigmas. Aos olhos do teólogo, a família e a escola são os primeiros grandes veículos de inserção da sustentabilidade na vida do cidadão, com programas de incentivo à economia de recursos e à reciclagem. “A ecologia deve ser incorporada desde o primeiro ano de formação, não como um tema que se estuda, depois esquece e vai adiante, mas como uma atmosfera que une todos, que cria uma nova consciência, uma nova responsabilidade, uma nova ética”, afirma.
A transição para uma sociedade sustentável deve ser orientada por princípios básicos, que, na opinião de Boff, incluem a redução do consumo; a reutilização e reciclagem de materiais; o respeito às diferentes formas de vida e o estímulo à rearborização, como forma de sequestrar carbono.
No entanto, na visão do teólogo, para se consolidar, essa mudança deve ser orientada por valores espirituais. “A ecologia tem dois aspectos: sanar as feridas passadas e prevenir feridas futuras, assim como preservar o máximo possível o capital natural, que o universo nos entregou, para estas e as próximas gerações. Tudo isso, no entanto, só ganha consistência se vier amparado por uma espiritualidade no sentido de saber que está ligado ao todo. É importante viver essa dimensão não só na consciência, mas como experiência”, afirma.
Para Boff, o atual momento por que passa a humanidade representa uma plataforma para grandes transformações, a começar pela própria mudança de pensamentos e prioridades. “Tenho uma esperança de que esta crise seja mais que uma crise. Seriam as turbulências que antecedem grandes transformações. Então irromperia um novo paradigma, vale dizer, uma nova consciência e de acordo com ela um novo modo de produção e de consumo que buscaria um acordo com as possibilidade reais da Terra e as demandas sensatas e justas de toda a comunidade de vida, especialmente, dos seres humanos”, projeta.
Releitura de Marx
Em termos de funcionamento social, principalmente quando se trata o meio ambiente, o capitalismo está longe de ter a preferência de Boff. Paradoxalmente, foi encarando o sistema econômico vigente que o teólogo atentou para a necessidade de uma ação ecologicamente mais efetiva. “O capitalismo em sua lógica torna a Terra e a natureza insustentáveis, o que Marx já tinha apontado no terceiro tomo de ‘O Capital’. Há uma contradição entre o desenvolvimento de tipo capitalista e a natureza”, ressalta.
Na opinião do pensador, enquanto a natureza possui uma lógica circular de equilíbrio dinâmico, o capitalismo é linear, baseado na produção e consumo ilimitados.
Segundo Boff, o capitalismo vende a ideia de que a qualidade de vida e ascensão social passam, necessariamente, pelo consumo. No entanto, para que uns possam consumir ao máximo, outros têm que consumir de forma insuficiente. “É desumano e irracional que 327 famílias possuam quase a metade de todas as riquezas da Terra e que três indivíduos tenham mais renda do que 48 paises onde vivem 600 milhões de pessoas. Isso representa uma ofensa aos direitos humanos”, reforça.
O fato de ser um humanista convicto, no entanto, não impede que Boff seja crítico em relação à visão mecanicista da natureza que se consolidou no século XX. “Devemos superar o antropocentrismo e a ilusão de que o ser humano é o centro de tudo. Ele é um elo da corrente da vida, pois a vida é una e unitária. Todos os seres vivos são feitos com os mesmos 20 aminoácidos e as mesmas quatro bases fosfatadas. Portanto, somos todos irmão e irmãs”, ressalta.
Para o teólogo, a saída para superar o consumo perdulário, que tem levado o sistema ao colapso, é analisar e reproduzir as relações estabelecidas pela natureza que são baseadas no equilíbrio. “Devemos seguir o que nos aconselha a natureza. Ela não faz lixo, vive do suficiente e inclui a todos”, afirma.
Caminhos curtos nos levarão ao fracasso
De acordo com o pensador, a discussão da sustentabilidade passa pela ampliação dos processos globalizatórios para além da vertente econômica. “Existe um momento político da globalização, no sentido da democracia ser uma referência global dos direitos humanos, como não usar a violência para resolver problemas, priorizando o diálogo, a negociação e o convívio”, afirma.
O teólogo defende também a globalização na dimensão ética, que ensina os valores mínimos que nos permitem não nos devorar uns aos outros, assim como salvar o planeta Terra e a natureza devastada. E, por fim, a globalização pelos caminhos espirituais, representada pelas religiões e afins, que desempenha o papel de fortalecer os direitos do cidadão.
No entanto, Boff acredita que apesar da ascensão do debate relativo à sustentabilidade falta comprometimento efetivo com a busca de um novo acerto entre economia e ecologia na perspectiva da manutenção da vida na Terra. Diante da crise –crê– a solução buscada deveria ser resolver os problemas da humanidade, não os do capitalismo. “As medidas que norte-americanos e europeus estão tomando para combater a crise financeira apenas prolongam a agonia. Mesmo com correções e controles, todos querem manter o sistema, que se mostrou insustentável para toda a humanidade e para a natureza”, conta.
O teólogo também é contrário às políticas desenvolvimentistas, que priorizam o crescimento econômico em detrimento das questões ambientais e sociais. Síntese desse pensamento, o PAC tem sido alvo de críticas de Boff. “O Brasil é um país-continente. Possui reservas naturais que lhe permitem fazer projetos arrojados como o PAC do presidente Lula. Trata-se de puro crescimento material sem consideração dos custos ecológicos”, afirma. Com o aquecimento global crescendo –reforça– o que se fizer com o PAC agora pode ser em grande parte perdido entre 15 e 20 anos. “Nem o Governo nem as empresas incluem a sustentabilidade como um fator determinante em suas estratégias de produção. A sustentabilidade de que falam é pura retórica sem correspondência prática”, completa.
Na opinião de Boff, o caminho mais curto para o fracasso de todas as iniciativas para sair da crise sistêmica é desconsiderar –como vem sendo feito, em sua análise—o fator ecológico. “Ele não é uma ‘externalidade’ que se pode tolerar por ser inevitável. Ou lhe conferimos centralidade em qualquer solução possível ou então teremos que aceitar o eventual colapso da espécie humana”, defendeu em artigo recente.
Acabar como os dinossauros
Para o frei, as práticas capitalistas autosuicidárias podem levar a humanidade ao fim que tiveram os dinossauros, que preferiram morrer a se adaptar. A persistir o atual curso de consumo em 2050 a humanidade vai precisar de duas Terras inteiras para sobreviver. No entanto –prevê – poderá não chegarer lá. A Terra encontrará um outro equilibrio, até porque como um todo, ela pode viver tranquilamente e até muito melhor sem a presença humana. “As bactérias, fungos e microorganismos nem vão perceber o nosso desaparecimento. Talvez sintam que as ameaças de pesticidas e poluentes terão diminuído”, provoca.
O autor considera a mudança de sistema a única maneira de acabar com os problemas sociais e ecológicos do planeta, e sugere a adoção de um novo modelo, que combine igualdade social e preservação do meio ambiente.
O bem-estar da humanidade depende da preservação de uma biosfera saudável com seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. Portanto, o projeto de sustentabilidade e preservação da espécie humana parte da declaração de responsabilidade e cuidado com a Terra.
O primeiro passo a caminho de políticas efetivas para uma vida sustentável, segundo Boff, está em ter consciência da gravidade da situação. “Há o risco de que cheguemos tarde demais. Quando a água nos bater no nariz aí faremos de tudo para sobreviver. Mas somos portadores de inteligência e de instinto de sobrevivência. Temos tecnologias e meios financeiros suficientes para equilibrar totalmente o planeta”.
Quadro –
Dimensões da ecologia, segundo Leonardo Boff:
Ambiental – preocupa-se com o meio ambiente, para que não sofra excessiva desfiguração, com qualidade de vida e com a preservação das espécies em extinção. Procura tecnologias novas, menos poluentes, privilegiando soluções técnicas. Ela é importante porque procura corrigir os excessos da voracidade do projeto industrialista mundial, que implica sempre custos ecológicos altos.
Social – insere o ser humano e a sociedade na natureza. Prioriza questões como saneamento básico, uma boa rede escolar e um serviço de saúde decente. Combate a injustiça social, por entender que ela representa uma violência contra o ser humano, que é parte da natureza.
Mental – chamada também de ecologia profunda, sustenta que as causas do déficit da Terra não se encontram apenas no tipo de sociedade que atualmente se tem, mas também no tipo de mentalidade que vigora, cujas raízes alcançam épocas anteriores à história moderna.
Integral – parte de uma nova visão da Terra, inaugurada pelos astronautas a partir dos anos 60 quando se lançaram os primeiros foguetes tripulados que permitiram ver a Terra de fora.

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