Tendências – Os riscos e benefícios da nova militância pop (parte 2)

Tendências – Os riscos e benefícios da nova militância pop (parte 2)

Cresce a tendência de se preocupar com os umbigos alheios
 
O ator Leonardo Vieira reconhece que apoiar causas sociais pode melhorar a imagem pública de artistas. Mas, ao escolher participar do MHud, a ONG que defende direitos humanos, o fez como um cidadão comum e por princípios. “Independentemente da fama, as pessoas devem ter consciência das suas obrigações sociais e nunca recuar da responsabilidade social”, prega. Os resultados – acredita – são mais importantes para a causa do que para a melhoria de sua imagem pública. No seu caso específico, os benefícios mais diretos são a satisfação pessoal de poder ajudar alguém e os fortes vínculos pessoais criados com os beneficiários da causa. Mesmo não atuando freqüentemente no movimento, em virtude da agenda de gravações de novela, Vieira diz ser impossível não criar vínculos diante do apelo das pessoas que sofrem. “Já passei por situações com gente chorando no meu ombro e me pedindo ajuda, como se eu pudesse fazer algo ali, naquele momento, e ajudá-las efetivamente” atesta.
Por essa razão, o ator não acredita na associação pura e simples de imagem a uma causa sem envolvimento com as pessoas e a realidade que representam.
“Como artistas, usamos nossa visibilidade para chamar a atenção para as causas que defendemos. Os artistas têm a tendência de olhar para seu próprio umbigo, mas eu e os meus colegas decidimos olhar para umbigos alheios”, brinca.
Olhar para os umbigos alheios é importante sim. Especialmente numa sociedade que tende a se orientar por uma visão de mundo individualista. Mas esse olhar deve ter interesse legítimo e não apenas superficial. Esta é a opinião da atriz global Karina Bacchi. Para ela, os artistas só devem se envolver com causas que conhecem a fundo e nas quais acreditam. Do contrário, não vê sentido no engajamento. Filha de Nádia Bacchi, fundadora da ONG Florescer, que realiza trabalhos na favela de Paraisópolis (São Paulo), Karina é presidente do conselho consultivo da organização e têm noção clara do seu papel e do impacto de sua imagem para a divulgação da causa. “Visibilidade no terceiro setor, hoje mais do que nunca, agrega parceiros, que são necessários para dar continuidade, sustentação e desenvolvimento ao trabalho das ONGs.” Além do cargo que ocupa na Florescer – onde participa não apenas das campanhas de mídia mas também de decisões cotidianas, como o planejamento de eventos e as reformas na sede – ela empresta seu carisma de figura pública para instituições como Pestalozzi, Graac, Ibcc e Ação Criança.
Ana Moser concorda com Karina. A ex-jogadora acha arriscado uma pessoa pública vincular sua imagem a uma causa sem compromisso efetivo com ela. O risco de botar só o rosto e não o coração é de parecer oportunismo. “Muita gente diz que está envolvida em projetos de inclusão. Mas, na verdade, fazem apenas exposição de marca”, critica. Quanto maior o nível de consciência da celebridade – acredita – maior é a noção de responsabilidade sobre os efeitos que sua imagem pode gerar para as causas apoiadas. Ainda que não haja envolvimento regular, o importante é que a participação seja autêntica e efetivamente transformadora.
Exemplo de participação de outros artistas levou Gabriel, o Pensador a criar a própria organização de terceiro setor
 
A militância social dos famosos costuma ser fonte de inspiração para líderes e pessoas que trabalham no terceiro setor. Mas também pode emular a participação de outros ídolos, aumentando a trincheira dos engajados. Foi o que aconteceu com o cantor e compositor Gabriel, o Pensador. Vizinho da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, ele passou a infância brincando com a meninada da comunidade. A impotência diante da miséria, porém, sempre o incomodou. Depois de passar algum tempo apoiando uma organização, o músico decidiu criar sua própria ONG, Pensando Juntos, com o objetivo de reintegrar socialmente os meninos e meninas da Rocinha.
A iniciativa foi tomada depois de observar o aumento do interesse de pessoas com destaque na mídia por campanhas e organizações sociais. “Acho legal, porque agora eu posso estimular outras pessoas a participarem também”, comemora. Assim como Vieira e Karina, o Pensador não acredita em envolvimento superficial. Até porque participar para valer requer mais do que ceder o sorriso para algumas fotos. Exige atenção, energia e trabalho. “Vai tempo, dor de cabeça, tem que conversar muito, resolver problemas. Mas vale a pena, quando é feito com prazer”, conta o músico. Para ele, gerenciar o próprio projeto significou um alívio, na medida em que ele agora sabe exatamente onde são aplicados os recursos arrecadados. A má destinação do dinheiro de campanhas sociais – seja por gestão ineficaz seja por má fé – é algo que preocupa os famosos.
Segundo especialista inglesa, associação da imagem de um ídolo a uma causa requer planejamento adequado
 
Especialista em captar recursos para projetos comunitários, a inglesa Victoria Anderson é uma defensora ardorosa da adesão de celebridades a causas sociais. Os benefícios são vários e para ambas as partes. Mas essa participação requer planejamento. E alguns cuidados. Primeiro, é preciso avaliar o nível de motivação do artista com a causa e o quanto ele está disposto a participar. Depois, a organização beneficiária deve ter clareza sobre o melhor uso para o vínculo da causa com a imagem do ídolo. Segundo Victoria, muitas vezes as organizações não sabem o que fazer com o apoio de uma celebridade. “Não é preciso necessariamente envolvê-la e fazê-la interagir com projetos comunitários. Mas pode-se estimulá-la a participar, por exemplo, da tarefa de levantar dinheiro, melhorar a reputação da entidade, mobilizar fundos e contatos”, diz a gerente de desenvolvimento e arrecadação de fundos da CAF (Fundação de Auxílio a Caridades), organização com sede em Londres, que tem como parceiro, no Brasil, o Idis – Instituto do Desenvolvimento do Investimento Social. “O cuidado necessário é nunca se esquecer de que celebridades são seres humanos que, além de sua imagem, têm também contribuições pessoais para dar”, afirma.
Ainda de acordo com Victoria, a organização beneficiária deve avaliar, com o ídolo, a quantidade de tempo disponível para trabalhar a causa e como gerenciar essa dedicação. O mais importante, para a especialista inglesa, é envolver a celebridade com alguma atividade que tenha a ver com o que ela faz ou pela qual seja publicamente reconhecida. Se o convidado é um chef de cozinha, por exemplo, faz mais sentido ele oferecer um jantar privativo e doar o dinheiro posteriormente. Se é um artista que, em algum momento da vida, enfrentou problemas com drogas ou alguma doença, Victoria acha válido que ele use seu tempo de doação à causa para compartilhar suas experiências de superação com outras pessoas. “Esse tipo de apoio sempre sensibiliza, mobiliza adeptos e recursos”, ensina.
Um avenida de duas mãos, com benefícios e riscos para as partes
 
Na opinião de Mário Rosa, a participação de celebridades em causas de interesse público é uma via de mão dupla. Com benefícios, mas também riscos para uma e outra parte. Riscos sim. O autor de Reputação na Era da Velocidade alerta sobre um perigo nem sempre bem avaliado nos processos de associação da imagem de uma pessoa pública a uma campanha ou organização sociais: se uma das partes tiver a sua imagem maculada por alguma escândalo, as outras serão automaticamente arrastadas para a crise. E viverão dias de desgaste. Victoria, da CAF, constata que, na Inglaterra, as organizações têm ponderado muito antes de convidar famosos para empunhar suas bandeiras. O receio é que, com a marcação cerrada dos tablóides britânicos, que “consideram a vida pessoal da celebridade uma propriedade pública”, um deslize ou mesmo um boato em tom sensacionalista coloquem na berlinda o seu patrimônio de credibilidade.
Nem todos os famosos engajados admitem, mas um risco permanente é o de ter o seu apoio confundido com oportunismo. O julgamento público sempre preocupa quando há forte exposição de imagem e muita comunicação de massa. Segundo Rosa, a linha que diferencia o investimento na divulgação da causa de uma aparente autopromoção é muito tênue. Por isso – acredita – há quem prefira até evitar a divulgação do seu envolvimento. São as próprias organizações, no entanto, que insistem na divulgação porque sabem que a imagem pública do ídolo pode impulsionar a causa e que o seu exemplo costuma inspirar outras adesões. Diante desse quadro, o consultor acha um equívoco julgar os famosos por suas motivações, porque, independentemente delas, a atitude de apoio sempre representará uma contribuição. “Não acho que as pessoas precisam ter desprendimento pleno dos benefícios próprios. Quanto mais elas entenderem que essa relação é uma troca, mais vamos poder melhorar as condições do trabalho social no Brasil. Quanto mais as pessoas forem interesseiras, mais avançamos”, provoca. O publicitário Percival Caropreso também acha exagerado condenar o comportamento de famosos que se associam a causas socioambientais apenas para se autopromover, mas vê nesse vínculo uma chance de fazê-las se engajarem efetivamente. “Nosso papel é transformar as pessoas que entram no mundo social pela porta da vaidade e agregar consciência e atitude, para que produzam efeitos proveitosos para a sociedade.”
A despeito dos riscos, os benefícios são evidentes. Especialmente, quando na relação de intercâmbio, as contrapartidas se equilibram. “É uma relação de troca. Como o ídolo consegue naturalmente destaque para tudo o que faz, as causas sociais apoiadas por ele passam a receber a mesma atenção”, diz. Associar-se a “significados positivos” ajuda os artistas, políticos e esportistas a contrastarem sua imagem com o bombardeio midiático de “maus exemplos, desvios e transgressões de ética”. Se cada vez mais os veículos de comunicação procuram vender a idéia de que os famosos são mocinhos virtuosos – explica Rosa – resta a eles agirem como manda o figurino. “Ninguém quer adorar a um ídolo contestável”, alerta.
Imagem de celebridade ajuda, mas não é tudo para uma causa social
 
Incontestável é o poder de fogo da imagem de Gisele Bündchen, uma das mais fulgurantes estrelas do universo fashion. Ninguém tem dúvida de que o carisma, a beleza e aura de vênus da top model podem vender tudo o que se quiser no mundo das grandes grifes de moda e beleza. Mas será que este conjunto de atributos pode vender também uma causa ambiental, considerando o fato de que a modelo nunca foi uma militante desta ou de nenhuma outra causa? A Grendene, o Instituto Socioambiental, o publicitário Percival Caropreso, a agência W-Brasil e a recém-convertida Gisele apostaram que sim. A campanha Y Ikatu Xingu é um exemplo de que, com planejamento adequado, uma modelo internacional pode emprestar sua valiosa imagem para ao mesmo tempo divulgar uma marca de sandálias (cuja matéria-prima é o plástico) e chamar a atenção para um sério problema que afeta as populações indígenas da região do Rio Xingu, com resultados vantajosos para as partes interessadas.
Toda a ação foi cercada de cuidados profissionais. E só chegou a um bom termo porque a modelo envolveu-se pessoalmente no processo. “A Gisele é convidada para atuar em inúmeras causas, mas nunca havia consentido emprestar sua poderosa imagem a nenhuma delas”, conta Andréa Klemm, planejadora de Marketing da Grendene. Segundo ela, a empresa hesitou antes de fechar a parceria, porque, sem tradição em responsabilidade social, receava violar a imagem da estrela. Gisele, porém, tomou a causa para si, como pessoa física e não entidade comercial, depois de ter visitado por conta própria a área do Alto Xingu e recebido o recado de que os índios estavam morrendo de fome por conta da poluição das águas. “O vínculo foi estabelecido a partir de princípios firmes. Tinha que ser bacana e seguro para a Grendene, pertinente para a imagem da Gisele e relevante para os índios”, explica Caropreso, o especialista que intermediou a parceria entre a empresa, a modelo e o Instituto Socioambiental (ISA), responsável pela campanha.
Para Beto Ricardo, membro do Conselho Diretor do ISA, a adesão da top model foi inesperada, mas diz estar satisfeito. A organização estava preocupada com questões locais e de baixa escala e pouco alcance, quando, segundo suas próprias palavras, “de repente caiu um raio chamado Gisele Bündchen na nossa cabeça”. O raio a que se refere possibilitou “ampliar nossa campanha global e exponencialmente, e até mesmo fora da nossa estratégia de tempo.” A imagem de Gisele ajudou a chamar a atenção da população para o problema das águas do Xingu a ponto de despertar o interesse de adesão de outras empresas. “Não soubemos administrar as vantagens e os riscos. As populações regionais que têm responsabilidade direta sobre aquele lugar acham, muitas vezes, que a adesão de celebridades pode engrossar a denúncia sobre a situação. Mas elas não ajudam muito a resolver o problema”, afirma. A solução para a desconfiança, segundo ele, é uma adesão profunda, afetiva e de longo prazo, “que não seja apenas jogada pontual e temporária calculada pelos marqueteiros”.
A lição que se pode extrair é que, bem planejada, a participação de ídolos ajuda a promover as causas. E, nesse sentido, deve ser bem-vinda. Mas ela não é tudo. E sozinha não muda a realidade do mundo. Embora ajude a torná-lo um lugar mais solidário para se viver.

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