Soluções – Redes sociais: resultados coletivos com poder descentralizado

setembro de 2005

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Consolidadas há menos de duas décadas no Brasil, as redes sociais somam importantes conquistas para o desenvolvimento do País. Confundidas com listas virtuais de discussão, elas são organizações complexas que implicam em ações concretas e já era
Em 1991, quando a Rede Feminista de Saúde – RFS, que atualmente congrega 113 entidades, começou a organizar suas atividades, o Brasil nem sonhava com o advento da Internet. Fax era um luxo para poucos. Contava-se com correio, telefone e muita boa vontade na hora de colocar alguma ação em prática. Ao lembrar desses tempos, a médica Fátima Oliveira, secretária executiva da RFS quase nem acredita que era possível fazer mobilizações nacionais daquela forma. Thais Corral, da Rede de Desenvolvimento Humano – Redeh, faz coro ao lembrar que a Eco-92 foi organizada por meio de uma rede que pouco contou com tais “modernidades”.
“Nosso primeiro boletim informativo, lançado em 1995, circulava via fax. Tanto que recebeu o nome de Redefax. Apesar de atualmente ser enviado por e-mail, mantivemos o nome em homenagem aos velhos tempos. Era a forma mais rápida que tínhamos de mobilização quando lutávamos, por exemplo, contra um projeto de lei do atual presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, que propunha o direito à vida desde a concepção”.Ao vasculhar suas memórias, Fátima revive a chegada do fax na RFS. “Foi uma revolução. Era rápido e a transmissão barata, mas o aparelho muito caro. Nem todas as organizações e grupos feministas o possuíam, mas sempre alguém dava conta de fazer cópias e distribuir de outras formas. A chegada do correio eletrônico foi outra mudança radical na nossa vida política”.
As memórias da secretária da RFS na abertura desta matéria deixam claro que articulação em rede e Internet não são sinônimos, como muitos pensam. Para Thais Corral, a Internet pode ser considerada uma faca de dois gumes. Potencializou as redes e, ao mesmo tempo, corrompeu o conceito e enfraqueceu a ideologia. “A partir da Internet começou-se a achar que qualquer coisa é rede. A palavra virou moda e muitas listas de discussão se autodenominam rede. Só que o conceito é bem mais abrangente, está ligado a atividades, a ações e não apenas a discussões. A comunicação virtual é um instrumento, um impulsionador e não a finalidade de uma rede”. Afinal o que é uma rede social, o que ela faz e por que é tão importante para o terceiro setor?
Entra e fica quem quer
Segundo Célia Regina Belizia Schlithler, coordenadora de programas do Núcleo de Investimento Social Comunitário do Idis e autora do livro Redes de desenvolvimento comunitário: iniciativas para a transformação social, uma rede nasce no momento em que alguém percebe que sozinho não vai chegar lá. Que o caminho para maiores resultados não é trabalhar em concorrência, mas se unir a outros que têm o mesmo objetivo. E isso se faz voluntariamente.
Os principais motivos que levam as instituições a se organizar em rede são a identificação com os parceiros e os projetos comuns. Cada elemento é um potencial multiplicador das atividades. As conexões não saem de um ponto central, mas se expandem igualmente ou quase a partir de qualquer um dos elementos integrantes. Algumas ficam até tão grandes que originam sub-redes, como o caso da Rede Brasileira de Educação Ambiental – Rebea, que se autodenomina rede de redes e não rede das redes, enfatiza Patrícia Mousinho, secretaria executiva da Rebea. São quase duas dezenas de redes regionais ou temáticas, que promovem de forma autônoma trabalhos e discussões de interesse regional, o que evita a perda de foco ou formação de grupos à parte dentro da atuação nacional.
Por ter caráter voluntário, as articulações em rede necessitam constantemente motivar seus participantes. “Um dos trabalhos mais árduos de uma rede é se manter viva”, afirma Thais. “Precisa-se sempre de um elemento novo que indique avanços. Uma rede não pode funcionar de vez em quando, só quando alguém se manifesta. Por isso é fundamental criar discussões e atividades que liguem as pessoas permanentemente. É como nas relações pessoais, temos de manter o afeto vivo”.
Em piso plano, ninguém tropeça
Uma das principais características dos sistemas de rede que favorecem o terceiro setor é a horizontalidade. O segundo setor costuma ter mais problemas ao se organizar em rede pela sua tradição hierárquica. Apesar de o empreendedorismo do terceiro setor propiciar o trabalho dessa forma, manter uma estrutura horizontal não é tarefa das mais simples.
“Um dos principais desafios é justamente a nossa falta de cultura democrático-participativa. Os modelos de organização que temos são piramidais, hierárquicos”, analisa Célia. Para ela algumas organizações até dificultam a participação ativa de seus representantes .  “Permitem que seus membros vão às reuniões, porque querem ser beneficiadas, mas não aceitam dedicar parte de seu tempo às ações decorrentes. Há diretorias de organizações que têm muita dificuldade para aceitar o modelo horizontal.   A melhor forma de vencer esses obstáculos é preparar os representantes para o diálogo e trazer os diretores para o grupo”, conclui.
“Somos herdeiros de modelos absolutamente verticalizados. Temos muito a aprender e exercitar sobre autonomia e a multiliderança”, complementa Patrícia, da Rebea. “Embora se tenha adotado essa opção do ponto de vista conceitual, é comum que membros das redes caiam em armadilhas que reflitam os padrões mais convencionais de organização. Esperam que, de algum lugar, venha o comando, a decisão. Precisam enxergar uma figura central”.A horizontalidade provavelmente seja o fator mais difícil de se lidar em uma rede. Além de mexer com características muito comuns nos seres humanos como vaidade e competitividade, o funcionamento horizontal exige estrutura e metodologia de trabalho diferenciadas daquelas encontradas no dia-a-dia, mesmo do terceiro setor.
O criador da rede nada mais é do que aquele que teve a idéia, pois em sendo uma construção coletiva, a rede não tem diretores e muito menos presidente. Ela trabalha em grande parte dos casos, basicamente com os chamados facilitadores e um secretariado executivo, que centraliza funções burocráticas durante um tempo, mas não toma nenhuma decisão pela rede. Esse secretariado, substituído periodicamente, pode ser ocupado por uma organização ou por uma pessoa integrante da rede.
Os facilitadores podem ser definidos como as tais lideranças naturais, pessoas que têm mais disposição, tempo e facilidade de assumir tarefas e integrar pessoas. Cuidam do planejamento e da organização das reuniões, de promover a sustentabilidade e a comunicação entre os membros. Como lideranças naturais, surgem com a dinâmica da rede. Assim como a secretaria executiva, eles não têm qualquer autonomia para tomar decisões. Podem ser cada vez em maior número e até se revezar nas tarefas para evitar qualquer tendência à verticalização. “Os facilitadores criam estratégias para promover a multiliderança e a co-responsabilidade. Não são dirigentes nem coordenadores, mas facilitadores,” defende Célia.
“Na RFS, a forma de atuação sempre foi explícita: nenhuma pessoa ocupa um espaço de representação em seu próprio nome, mas em defesa dos interesses coletivos da rede. Mas ainda assim temos problemas”, conta a médica Fátima. “O grande nó é o desejo, às vezes implícito e outras expresso, de vitaliciedade, decorrente do elitismo de que pessoas que dominam, teórica e politicamente determinados assuntos. Elas querem estar sempre nas representações como se fossem ‘donas de determinadas áreas’, o que torna o processo de indicação de representação complicada e com seqüelas de toda ordem”, analisa.
Ainda sob a égide da horizontalidade, um outro entrave é o fluxo de informações. “A falta de retorno das informações deve vista como um problema político grave e uma prática que emperra a ampliação da democracia”, alega Fátima. Para tais práticas, Célia prevê constante capacitação e muito diálogo entre os integrantes das redes.
Bate–papo com mãos à obra
Taís e Célia lembram que o objetivo de uma rede social é promover transformações. Por isso, mãos à obra é fundamental. A discussão, seja pela Internet ou em encontros pessoais periódicos – considerados fundamentais para se manter o comprometimento dos integrantes da rede – não pode ser o objetivo, mas um dos elementos para se promover ações concretas. Pensar em atuações em larga escala a partir de uma estrutura horizontal, sem que haja um “chefe” é um processo complicado, mas as redes brasileiras vêm mostrando resultados positivos. Patrícia conta que na Rebea as tomadas de decisão costumam ser coletivas. Mesmo assim eventualmente deparam com atitudes individuais e descentralizadas, o que a rede como um todo procura evitar por meio de discussões constantes e busca pelo comprometimento com os objetivos coletivos.
” Os membros procuram estar em contato permanente por meio da Internet, de modo que a rede possa funcionar de forma concertada e as pessoas de alguma forma estejam próximas, trocando. Isso ajuda muito a não dispersar e minimizar atitudes individualistas. No início do governo Lula fizemos uma grande mobilização em rede contra a extinção dos projetos de educação ambiental no MEC e conseguirmos reverter o quadro. Essa foi uma grande conquista”, explica a secretária da Rebea.
Mesmo com tantos recursos, ainda encontram-se dificuldades para efetivar a comunicação entre os membros. “A tecnologia se desenvolve em ritmo impressionante. Porém, nossa população demora muito para ter acesso a esse desenvolvimento. Isso também acontece nas redes Precisamos pensar na inclusão digital (equipamentos e capacitação) das organizações sociais, dos conselhos de direitos e do setor público. Aqui é importante o papel das empresas e de outras organizações financiadoras. A Fundação Telefônica, que financia Redes de Proteção à Infância e Adolescência, é um excelente exemplo”, lembra Célia.
As decisões coletivas são voltadas para as ações da rede e não interferem nas atividades quotidianas de seus membros. Cada organização lida com seus temas da forma que achar melhor. A unificação metodológica se dá nas ações coletivas. Como a adesão e a participação são voluntárias, dificilmente alguma organização que integre uma rede, aja no seu dia-a-dia de forma totalmente oposta à dos princípios coletivos.
As redes são consideradas pelos estudiosos no tema como bons exercícios para se conviver com a diversidade, pois mesmo que tenham objetivos comuns as pessoas que nela se reúnem têm realidades e históricos diferentes e moram em regiões muitas vezes desconhecidas uma das outras. Essa diferença cultura se dá principalmente nas redes internacionais, cuja troca de experiência costuma acabar prevalecendo quanto às ações coletivas.
Para Thaís, em uma rede nacional a viabilização das ações tende a ser maior que, numa rede internacional. “As redes internacionais também promovem ações, mas em menor quantidade e com menos encontros presenciais. Nelas, a tendência em boa parte do tempo é mostrar a viabilização das propostas em cada país, priorizando a troca de experiências em nível internacional, o que pode, em um primeiro momento, parecer com uma lista de discussão, mas não é. A rede internacional tem objetivos bem definidos e propostas. O que acontece é que elas costumam ser concretizadas regionalmente, de acordo com cada cultura”.
Sustentabilidade sem estrutura formal
A sustentabilidade financeira das redes costuma se dar pelos próprios membros, raramente por apoiadores. Quanto aos projetos, a busca de recursos é parecida com as realizadas individualmente por cada organização. A não constituição das redes como pessoas jurídicas fazem com que, na hora de receber um patrocínio, um dos membros ou um consórcio deles assuma a responsabilidade burocrática. Quanto a regras de funcionamento, costuma-se optar por cartas de princípios ou acordos de conivência aprovados pelos integrantes a um estatuto formal.
O crescimento de uma rede pode ser monitorado de diversas formas, desde a realização de projetos ou eventos até pelo número de participantes ou fluxos de mensagens no caso do uso da Internet. Para a coordenadora do Idis, “embora quanto maior o número de conexões, maior o potencial de ações colaborativas, não concordo que o simples contato e troca de informações – significado geralmente atribuído à palavra “conexão” – gere transformações sociais. Corre-se o risco de a rede se transformar em um grupo de amigos, mas que não realiza trabalhos concretos. É preciso haver visão compartilhada, planejamento, projeto coletivo e estratégias participativas para a implementação das ações.
Patrícia lembra que as redes são dinâmicas e compara seus movimentos aos das marés. “As idas e vindas fazem parte. Há momentos de mobilização intensa, geralmente associados aos encontros presenciais, que são fundamentais para a manutenção do comprometimento entre os participantes. Nesses períodos, os contatos aumentam, novas conexões se estabelecem. Em outros há uma certa retração, mas nunca a ponto da rede ficar parada”, finaliza.
A origem na observação da na natureza
Um dos principais teóricos a trabalhar com o tema redes em sua concepção moderna foi Fritjof Capra. A importância das relações entre os seres o inspirou para os livros As conexões ocultas e A teia da vida. Ela foi notada pelo físico ao observar a natureza, a integração entre animais, plantas e microrganismos, que ele chamou de comunidades sustentáveis. A partir dessa percepção, Capra se perguntou como os sistemas funcionam e se organizam para sustentar seu modo de vida.
Em sua última visita ao Brasil, o físico simplificou o conceito de sistemática da vida em redes em um seminário em Curitiba, promovido, em agosto do ano passado, pelo Crea – Conselho Regional de Engenharia Arquitetura e Agronomia. Em sua palestra, disse que as redes constituem-se no padrão básico de todos os sistemas vivos. Como exemplo, citou os ecossistemas como redes de organismos que, por sua vez, são redes de células, que são redes de moléculas etc. Enfim, que onde quer que haja vida, há redes, sejam elas materiais como as teias de aranha ou funcionais como as cadeias de relacionamentos entre pessoas. É nesta última categoria que vêm se fortalecendo as redes sociais.
A naturalidade das redes vista por Capra na biologia é analisada sob a óptica social por Manuel Castells, autor da trilogia A sociedade em rede. Castells vê a organização em rede, que ele define como um conjunto de nós conectados, também como uma tendência natural, reforçada pelas ferramentas da era da informação. Olhando superficialmente para as definições de Capra e Castells será que, no contexto social, é possível dizer que todas as cadeias de relacionamentos podem ser chamadas de redes? Vimos aqui que não.
Caracterizam as redes sociais:*
Adesão voluntária
Interesses comuns
Interdependência
Ação coletiva
Criação de algo novo
Extensão em todas as direções a partir de qualquer ponto
Relações não lineares
Auto-regularização
Auto-organização
Horizontalidade
Dinamismo organizacional
Multiliderança
Democracia
Relacionamento presencial
Box3
Descaracterizam as redes sociais:*
Ações verticais
Decisões centralizadas
Perfil não participativo
Gestão autoritária
Hierarquia
Discussão como fim
Algumas conquistas das redes brasileiras ou com a participação delas
Estatuto da Criança e do Adolescente (1988)
Instituição do Dia Mundial de Luta contra a Aids no Brasil (1988)
Organização da Eco 92 (1992)
Organização do Fórum Social Mundial
Campanha contra a fome (1994)
Produção do Atlas da Mata Atlântica (2004)
* Fontes: Livros – Rede de desenvolvimento comunitário: iniciativas para a transformação social, Idis e Redes: uma introdução às dinâmicas da conectividade e da auto-organização¸WWF Brasil

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