Réplicas – Os três grandes desafios da humanidade no século XXI

20 de junho de 2007

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A humanidade deve enfrentar neste século três grandes desafios interligados: as mudanças climáticas, o déficit crescente de oportunidades de trabalho decente e a necessidade de alterar drasticamente a matriz energética, reduzindo o consumo das energias fósseis. Essa é a tese do economista polonês Ignacy Sachs, professor da École de Hautes Études Sciences Sociales de Paris e co-diretor do seu Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo.
Para Sachs, pioneiro na conceituação de desenvolvimento sustentável, o progresso futuro será cada vez mais discutido entre os protagonistas de seu processo, a partir do que o economista classifica como “negociação quadripartite”: entre os empresários, os trabalhadores, o Estado, e a sociedade civil organizada. Em um bate-papo promovido pelo Instituto Ethos, Sachs, que já morou no Brasil por 13 anos, discutiu os critérios para o desenvolvimento econômico, a produção de bioenergias e as formas de integrar os trabalhadores rurais a esse processo. Segundo ele, debater essas questões é essencial agora, “se não quisermos perpetuar modificações irreversíveis no clima, quando no máximo poderemos sentar à beira da calçada e chorar pelo leite derramado”.
Visão de sustentabilidade do mercado
Temos que partir da seguinte premissa: na nossa economia, o mercado tem um papel importante, mas devemos o quanto antes abandonar a ilusão de que ele tem uma visão social e ambiental. O mercado é míope e insensível a tais questões. Se queremos partir para um desenvolvimento ambiental e economicamente sustentável e socialmente includente, precisamos pensar com seriedade em como regular o mercado e qual é o papel do Estado desenvolvimentista. Regular o mercado consiste em introduzir critérios para os investimentos além do custo-benefício, e fazer com que sejam respeitados por meio de um conjunto de políticas públicas. A bola da vez é a bioenergia.
Desenvolvimento e crescimento econômico
Quando nos reunimos, em 1971, para organizar a Conferência de Estocolmo, no ano seguinte, havia na mesa duas posições extremas. Uma argumentava que o meio ambiente era uma invenção dos ricos para frear a industrialização dos países pobres, e que ainda havia tempo de sobra antes de tomarmos uma atitude. No outro extremo, estava a defesa de que, no fim do século, estaríamos ameaçados de morrer por excesso de poluição ou por recesso de recursos naturais. Porém, sobretudo, o que se pregava era o não-crescimento, como alguns grupos fazem hoje. Mas não é possível falar disso em um mundo atravessado por desigualdades sociais e de distribuição de renda abissais. Dizer que vamos parar de crescer é condenar à morte imediata os que estão na base da pirâmide social. Portanto, o desafio é continuar a crescer, mas de maneira diferente e com outra distribuição dos produtos do crescimento.
Falta de trabalhos decentes
O segundo desafio da humanidade no século XXI, depois de combater o aquecimento global, será lutar contra o déficit crescente de oportunidades de trabalho decentes em todo o mundo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 30% da população economicamente ativa do planeta está ou desempregada, ou no subemprego ou em atividades precárias que, no melhor dos casos, permitem apenas uma sobrevivência precária. Certamente não podem ser consideradas sinônimos de desenvolvimento, no sentido pleno da palavra. Se concentrarmos nossos esforços apenas no primeiro desafio e permitirmos que os problemas sociais ligados a esse déficit de trabalhos decentes se avolume, enfrentaremos uma crise talvez ainda mais dramática do que a ambiental. Os desafios devem ser enfrentados simultaneamente.
Revolução energética
Depois de combater o déficit de trabalhos decentes, o terceiro desafio será migrar, o quanto antes, da dependência do petróleo, para sair de uma geopolítica extremamente frágil e exclusiva que ele envolve. Esse certamente será um tema fundamental do século XXI. E a saída não vai se dar da noite para o dia. Pelo contrário, avançará por décadas. O problema não é a necessidade de parar de usar o petróleo porque vai faltar, mas por um ato de voluntarismo deliberado e responsável. Afinal, esse é um elemento central da luta contra as mudanças climáticas. Nenhuma revolução energética no passado aconteceu devido à escassez da energia que vinha sendo substituída. Quando a lenha foi trocada pelo carvão, e, em seguida, o carvão pelo petróleo, não foi porque faltou lenha ou carvão, mas porque havia outras fontes mais interessantes e baratas. Temos que aproveitar o preço alto do petróleo, que tornou outras fontes de energia competitivas. Mas essa não é a principal razão de colocarmos no centro da preocupação as energias alternativas. A grande questão é, no caso, como fazer com que a saída da produção de petróleo contribua, ao mesmo tempo, para a resolução do déficit de trabalhos. Isso nos faz colocar no centro do debate o modelo social no qual se fará essa transição.
Pró-álcool e modelo social para biodiesel
Ao falar sobre o futuro da bioenergia agora,  o problema em pauta é o modelo social que vai surgir entre dois extremos. O primeiro vocês conheceram com o pró-álcool, grande sucesso técnico e econômico. A curva de aprendizado do Brasil em matéria de produtividade do etanol e da cana-de-açúcar é sensacional, com produtos campeões de custos baixos. Pouparam-se milhões de dólares de importação de petróleo. Mas, do ponto de vista social, foi reforçado um modelo de crescimento concentrador e excludente, com as mazelas do latifúndio que o Brasil vem carregando desde a época colonial. Portanto, em um extremo, trata-se de um modelo que vai gerar muita renda e exportações – e uma grande favela. No outro extremo, produzirá a ambição: gerar o mesmo volume de riqueza e exportação, mas integrando os agricultores familiares nesse critério, de maneira a contribuir para a solução de dois principais desafios que a humanidade enfrenta hoje. Este é para mim o tema do dia.
Produção integrada de alimento e energia
Como articular a produção de cana-de-açúcar a outras atividades geradoras de oportunidades de trabalho e renda para o trabalhador familiar? No caso do biodiesel, a questão é exatamente a mesma, com a diferença de que existe uma sinalização positiva do governo, a idéia do selo social, que não existe para a cana. Agora, será que um selo social por si só resolve esse problema? Acredito que não. Devemos trabalhar muito, propondo e testando diferentes sistemas de produção integrada de alimentos e energia. Não resta dúvida de que essa é uma área que o Brasil tem enorme futuro à frente. Veja o que a Votorantim e a Suzano estão fazendo, por exemplo. Em vez de pensar só na madeira, devemos usar contratos de fomento para oferecer ao pequeno produtor alavancas de desenvolvimento rural e integrado, nas quais a produção é consorciada com outras atividades agropecuárias ou agroflorestais. Precisamos também considerar a recuperação de áreas degradadas por meio do plantio de certas oleaginosas. A Índia construiu todo seu programa de agroenergia na recuperação dessas terras usando o pinhão-manso, uma planta brasileira.
Desenvolvimento Rural

Contrariamente ao que se disse, sobretudo, no século passado, não podemos nos omitir de discutir um novo modelo de desenvolvimento rural. Porque a transição que os países hoje industrializados fizeram, de rural e agrícola para urbano e industrial, não pode ser reproduzida em escala compatível com a realidade demográfica de hoje, pelo menos por três razões. Primeiramente, porque nós, europeus, nessa transição, pudemos nos valer da migração de dezenas de milhões de camponeses retirados do campo para as Américas. Depois, o século passado foi o mais bárbaro da história da humanidade, e nos valemos de duas guerras mundiais para liquidar outras dezenas milhões de camponeses. Espero que não voltemos a lançar mão desse dispositivo.
E, finalmente, os refugiados do campo que chegavam às nossas cidades podiam se beneficiar no passado de um emprego razoavelmente fácil nas indústrias, porque estávamos em uma outra fase da industrialização. Hoje, vivemos o que os demógrafos chamam de “desindustrialização”, o que não significa que a indústria está diminuindo sua produção ou deixou de ser importante, mas que emprega muito pouco. Vem daí a ilusão de que podemos absorver nas cidades quem ainda está no campo, em escala, sobretudo, mundial. São dois bilhões ou mais de trabalhadores rurais. É lá que está concentrada a maior pobreza. Eles trabalham com um nível de produtividade baixíssimo. Saberemos ou não construir um modelo social e de desenvolvimento rural aproveitando a enorme janela de oportunidade que se abre da bioenergia para o Brasil, gerando empregos na produção da biomassa, no processamento, em todos os serviços de acompanhamento e de transporte, e, sobretudo, na utilização inteligente dos subprodutos?

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