Especial – Voluntariado: a combinação de solidariedade e cidadania

Especial – Voluntariado: a combinação de solidariedade e cidadania

No máximo 25% da população jovem e adulta brasileira está envolvida com trabalhos voluntários. Um percentual pequeno se comparado ao de países mais desenvolvidos que, com muito menos mazelas, apresentam índices de até 50% da população nessa faix
Desde adolescente, Dona Margarida, 71 anos, gosta de ajudar os necessitados. Há décadas, segue uma mesma rotina de solidariedade: junto com um grupo de senhoras, recolhe mantimentos e os entrega na Igreja, para serem distribuídos a cada quinze dias entre os moradores de rua. Está em paz com a sua consciência. Quantos são os beneficiários de sua ação e o que a vida deles mudou nesses anos ela não sabe. Alguns até conhece pelo nome, devido ao longo tempo de convivência.
Juliano é neto de D. Margarida. Com 23 anos, professor de Geografia, ele se dedica, aos sábados, a um programa multidisciplinar de apoio ao aprendizado em escolas da periferia de sua cidade. Além da formação universitária, fez cursos de capacitação em voluntariado, participa de reuniões de planejamento na ONG onde trabalha, tem metas a cumprir e utiliza ferramentas que permitem avaliar detalhadamente a evolução do desempenho de cada uma das crianças com quem mantém contato. Conversa pela Internet com pessoas que têm atividade social semelhante.
O que têm em comum Dona Margarida e Juliano além do grau de parentesco? O espírito solidário e cidadão, sem dúvida. Cada um a seu modo, com os seus métodos e crenças, atua como voluntário, acredita e trabalha por uma causa.
Juliano e Dona Margarida são personagens fictícios. Mas, perfis muito distintos, retratam as diferenças e a heterogeneidade do voluntariado no Brasil e no mundo. Dona Margarida é a voluntária que se move por crenças religiosas. Cerca de 57% dos que se dedicam ao voluntariado o fazem em movimentos religiosos. Juliano doa seu tempo e seus conhecimentos por senso de cidadania. Seu trabalho faz muita diferença para 77% das 275 mil organizações da sociedade civil (IBGE e IPEA) que funcionam com menos de um empregado remunerado. A grande maioria depende, portanto, do voluntário para realizar suas missões. No Canadá, apenas 13% das organizações contam apenas com voluntários.
A atividade voluntária não é exatamente uma novidade no País. Sua origem remonta ao Brasil colonial, com a Companhia de Jesuítas e, a partir do século 16, com as Santas Casas de Misericórdia. O que mudou especialmente nas últimas duas décadas foi o papel exercido pelos voluntários, a importância do seu trabalho e o conjunto de deveres e compromissos decorrentes de uma nova visão sobre a sua prática. Com o processo de redemocratização do País, observado a partir dos anos 80, e, conseqüentemente , a maior disposição das pessoas para a participação comunitária, antes desestimulada no período de ditadura militar, cresceu o número de interessados em doar tempo, conhecimento e experiência para causas sociais.
Um dos primeiros programas oficiais de voluntariado no Brasil foi instituído, em 1979, pela LBA – Legião Brasileira de Assistência. Mas não teve vida longa, encerrando-se com a extinção da organização, alvo de denuncias de corrupção. A partir deste fato, mas não especificamente por causa dele, iniciou-se no Brasil um movimento de organização e de profissionalização do voluntariado. E embora esta idéia esteja longe de ter aprovação unânime, cada vez mais voluntários admitem que o seu trabalho, apesar da espontaneidade que o caracteriza, pode obedecer a uma lógica mais compromissada com deveres e compromissos, gerando melhores resultados para os beneficiários.
A criação do Conselho da Comunidade Solidária, em 1997, constituiu um outro momento de estímulo formal ao voluntariado brasileiro. Sob a coordenação da ex-primeira dama Ruth Cardoso, e com as bênçãos do Governo Federal a organização contribui decisivamente para difundir o conceito dos Centros de Voluntariado pelo país. Com a Lei 9.608, de 1998, este tipo de atividade ganhou uma configuração jurídica própria e, rapidamente, passou a ter representações em diferentes estados brasileiros
Em 2001, a motivação veio de fora com a declaração do Ano Internacional do Voluntariado pelas Nações Unidas. No Brasil, estima-se que a campanha tenha mobilizado algo em torno de 20 milhões de pessoas, elevando para 40 milhões o número de pessoas dedicada á prática.
Números divergem, mas ninguém contesta a importância do voluntariado

Os números não batem nas diferentes pesquisas. Mas ninguém tem dúvidas de que o voluntariado cresceu no País a partir de 2001, em grande medida por decorrência do Ano Internacional, cujos principais méritos foram os de estimular a prática e dar visibilidade a uma idéia que encontrava terreno fértil nos segundo e terceiro setores. Em 2001, uma pesquisa do Ibope em nove capitais brasileiras mostrou que 18% da nossa população jovem e adulta fazia ou já tinha feito trabalho voluntário em algum momento de sua vida. Estudo do IBGE divulgado em maio de 2005?, aponta um exército de 19,7 milhões de brasileiros solidários que dedicam parte do seu tempo a alguma causa. Uma pesquisa da ONU de 2003, mais otimista, indica 25% da população adulta envolvida com voluntariado. Entre os países que têm levantamentos estatísticos sobre o tema, México e Austrália apresentam um engajamento de aproximadamente 10% da população jovem e adulta em causas sociais. Como se verá mais adiante, em nações desenvolvidas como os Estados Unidos, até 50% de jovens e adultos trabalham em projetos sociais. A vizinha Argentina, com quem o Brasil compete, da economia ao futebol, registra índices próximos à pesquisa mais otimista sobre o Brasil. Cerca de 20% da população adulta daquele país alinha-se nas trincheiras voluntárias.
Do total de voluntários brasileiros, mostra a pesquisa do Ipsos, 53% são mulheres e 47% homens, o que indica uma profunda mudança em relação aos primeiros tempos de voluntariado de Dona Margarida, quando ele equivalia a “caridade”, algo intimamente ligado ao universo feminino. Observando os números, pode-se até concluir que o nível de escolaridade faz diferença na intenção de trabalho voluntário. Entre os brasileiros pós-graduados 23% são voluntários, e entre os que têm superior completo 20% fazem algum trabalho semelhante, ficando entre 8% e 9% os percentuais de voluntários entre as pessoas com até o ensino médio. Entre os analfabetos, o índice é de 3%. Mas o raciocínio não é tão linear quanto parece. É necessário, no entanto, considerar os números relativos de escolaridade e não apenas os percentuais sobre toda a população. Segundo o Censo 2000, menos de 7% dos adultos brasileiros têm nível superior, o que pode gerar um contingente relativamente pequeno de voluntários dentro de somatória total.
Pequeno, é verdade, mas profundamente transformador, graças, sobretudo, ao conhecimento e às competências técnicas que ele aporta no campo social. A idade tem pouco peso na atitude dos voluntários adultos brasileiros. Das cinco faixas etárias analisadas na pesquisa a partir dos 18 anos, o percentual de voluntários ficou entre 7% e 11% em cada uma delas, sendo que os índices de dois dígitos foram alcançados apenas nas faixas etárias acima dos 35 anos.
O brasileiro tem simpatia pelo trabalho voluntário, mesmo que não o execute. Pesquisa do Datafolha divulgada em 2001 aponta 51% da população dizendo acreditar nas organizações que usam trabalhos voluntários, com destaque para as religiosas. Individualmente, julgam que as pessoas ainda fazem pouco pela sociedade. Entre 60% e 73% dos jovens e adultos brasileiros se mostram dispostos ou muito dispostos a se envolver com trabalho voluntário. Entre os estudantes universitários a manifestação chega a 94%. Com toda essa vontade recolhida, por que no máximo 25% dos brasileiros transformam a intenção em prática?
Descartada a tendência natural do ser humano de falar muito mais do que efetivamente tem a intenção de fazer, para Bruno Ayres, mestre em ciências da informação e diretor do Portal do Voluntariado, há poucas instituições para muita oferta de mão-de-obra. “Se admitirmos, como perspectiva, um contingente de pelo menos 60 milhões de adultos brasileiros com vontade de fazer trabalho voluntário em 275 mil organizações da sociedade civil no Brasil, isso corresponderá mais de de 200 voluntários para cada instituição. Ainda que todas estivessem prontas e abertas para receber novos colaboradores ia sobrar voluntário”, comenta.
Os diversos perfis do voluntariado no mundo

A ligação do voluntário brasileiro com as instituições religiosas é muito forte. Um dos primeiros estudos importante sobre voluntariado brasileiro, a pesquisaDoações e trabalho voluntário no Brasil, de Leilah Landim e Maria Celi Scalon, publicada em 2000, mostra que 57% dos nossos voluntários atuam em instituições religiosas, 17% em instituições de assistência social, 14% em organizações não-religiosas voltadas para a saúde e educação e 8% em instituições de defesa de direitos e ações comunitárias.
Os dados de Landim e Scalon indicam que 28% da população mundial se envolve com trabalho voluntário. A importância do voluntariado não se limita ao campo da solidariedade. Melhor dizendo, o trabalho não remunerado de almas generosas tem também relevância econômica. Segundo estudo Johns Hopkins University, realizado em 1995, o voluntariado representa até 5% do PIB de vários países, tanto em bens como em serviços. Transformado em valores financeiros, o voluntariado significou para a Europa o equivalente a US$ 500 bilhões de dólares naquele ano. Nos Estados Unidos, esse montante foi de US$ 675 bilhões e no Japão, de US$ 282 bilhões.
Do outro lado do mundo, na Austrália, em 2000, o voluntariado contribuiu com US$ 42 bilhões para a economia do país e na Coréia, com US$ 2 bilhões. “Mas há um outro valor agregado que não pode ser medido em dinheiro”, afirma Kenn Allen, presidente do Civil Society Consulting Group, um grande grupo de consultoria sobre terceiro setor dos Estados Unidos e ex-presidente do IAVE – International Association for Volunteer Effort, uma das maiores associações de voluntariado do mundo, com membros em mais de 100 países. Para Allen, “os voluntários, além de benefícios econômicos, contribuem com uma energia, um comprometimento contagiante e uma forte capacidade de realização na luta contra os problemas sociais.”
Segundo o consultor norte-americano, cerca de 50% dos jovens e adultos daquele país fazem trabalhos voluntários pelo menos uma vez por ano. “Voluntariado é considerado uma prática saudável nos Estados Unidos. Envolve homens e mulheres, pessoas de todas as idades e de todos os cantos do País. As causas preferidas são aquelas voltadas para crianças e adolescentes, mas há muita ligação também com questões políticas e ambientais”, explica.
Uma pesquisa feita em 2003 pela organização Voluntários do Canadá revelou que naquele país 39% da população adulta se engaja em trabalhos voluntários e 57% deste contingente têm pelo menos nível universitário. Lá, como no Brasil, e em outros lugares do mundo, o maior ou menor envolvimento não depende da idade. Nas cinco faixas etárias entre 16 e 74 anos analisadas na pesquisa, o percentual de voluntários em cada uma delas ficou entre 37% e 44%. Apenas entre aqueles com mais de 75 anos é que ele foi menor, 26%. As causas que mais atraem os canadenses são a saúde, com 23,4% dos voluntários, seguida pela tríade arte- cultura-esportes com 21,5%. Meio ambiente, direitos legais e causas religiosas são as menos atrativas, com marcas iguais ou inferiores a 2% dos voluntários em cada uma delas.
Na Austrália, cerca de 4,4 milhões de pessoas fazem trabalhos voluntários, o que corresponde a 9 % da população local, situação similar à do Brasil. O grupo mais ativo, que compõe 40% do voluntariado australiano está na faixa etária entre 35 e 44 anos. Cerca de 47% dos voluntários australianos foi motivado por servir a comunidade e 43%, por satisfação pessoal. A Alemanha tem 34% de sua população adulta atuando em trabalhos voluntários. Irlanda, Peru, Japão, Holanda, Argentina e México ficaram respectivamente com 33%, 31%, 25%, 24%, 20% e 10%.
Entre a instituição formal e a ong do “eu sozinho”

Leilah Landim e Maria Celi Scalon mostraram em seu trabalho que o voluntário, pelo menos o brasileiro, não é uma pessoa com perfil especial, mas um cidadão comum, talvez um pouco mais “antenado” em relação aos problemas sociais. Não é apenas um indivíduo com generosidade acima da média, como muita gente pensa. Mas alguém que conseguiu combinar solidariedade com cidadania.
Para Ayres, essa tendência à “canonização” pode decorrer também da falta de remuneração do trabalho voluntário: “Há três pilares que sustentam o trabalho do voluntário: a espontaneidade, o fim comunitário e a não remuneração. Quando se fala em dinheiro, o retorno não existe ou não deveria existir, mas o melhor voluntário sabe muito bem o que está ganhando com a sua dedicação. Em diversas pesquisas, quase 100% dos entrevistados dizem que ganharam mais do que deram ao participar uma ação voluntária. Esse ganho é muito voltado para o crescimento pessoal, para mudanças na forma de ver o mundo e de agir no dia-a-dia”.
O crescente incentivo ao trabalho voluntário criou discussões até então inéditas sobre o próprio conceito de voluntariado. O voluntário passou a ser objeto, ele próprio, de debate e análise, tornando-se centro das atenções tanto quanto as causas a que se dedica. Prova disso são as redes de comunicação entre os voluntários, sites especializados, os cursos e os centros de voluntariado que só no Brasil somam mais de uma centena.
A necessidade de uma instituição organizada com nome e CNPJ para a realização de trabalhos voluntários é bastante questionada. Para Ayres, o voluntariado é algo que está dentro do indivíduo e que quando quer manifestar não depende de uma organização formal. Sobre aquele que se vincula a alguma organização, ele o define como voluntário “fordista”, pois obedece a uma estrutura, tem metas a cumprir e relatórios a entregar. Fora desse nicho há o que age por conta própria, na sua rua, no seu bairro ou até em seu círculo de amigos. Sozinho ou em grupo. E muitas vezes nem sabe que o que está fazendo se enquadra no conceito de voluntariado. Essa possibilidade de se agir por “conta própria” joga por terra o argumento do gargalo das organizações como impedimento para a ação voluntária, pois quem quer de verdade assume compromissos e faz alguma coisa, mesmo na figura de “cavaleiro solitário”.
Entre os principais motivos que impedem a realização de trabalhos voluntários, pelo menos entre estudantes universitários, está a famosa falta de tempo. Uma pesquisa feita pelo portal Universia Brasil, em parceria com a HR2 Pesquisas Avançadas, revelou que, entre os estudantes universitários brasileiros não envolvidos com trabalho voluntário, 41% usam o velho bordão “não tenho tempo” como justificativa. O segundo motivo mais freqüente é a falta de convite ou oportunidade (33%) – talvez aqui o dado indique já um grande problema de falta de informação ou quem sabe de grau de inquietude ainda insuficiente – seguida por desinteresse ou comodismo (31%).
A co-existência, em proporções iguais, entre o voluntário institucionalizado e aquele que “trabalha por conta própria” é um fenômeno mundial. Allen considera que as iniciativas individuais, dependendo do caso, costumam ter até resultados mais significativos que ações institucionalizadas em ONGs ou em programas de voluntariado promovidos por empresas. “Em situações como a do furacão Katrina, por exemplo, as pessoas que, em vez de esperarem a Cruz Vermelha, começaram por si próprias a reunir vizinhos para evacuar regiões ou transportar aqueles que estavam mais necessitados foram determinantes no sucesso geral das operações”, garante.
As contas apresentadas no inicio desta matéria sobre o numero de potenciais voluntários no Brasil e a quantidade de organizações fortalece o conceito do voluntário por si só. Até mesmo porque muitas organizações, como destacou matéria na edição passada de Idéiasocial 02, não estão preparadas para lidar com seus voluntários, o que pode desmotivá-los em vez de atraí-los. A grande diferença entre gerir voluntários e administrar empregados é a inquietude dos primeiros. O voluntário não é um empregado que recebe ordens sem se manifestar. É um inconformado por natureza, alguém que vai sempre querer saber o motivo de tudo que faz, questionar e sugerir. Nem sempre as organizações sabem ou querem lidar com pessoas deste tipo. Para aproveitar o potencial humano ao máximo, a entidade precisa dispor de uma gestão aberta, voltada para a construção coletiva e preparada para o questionamento, ser capaz de promover um processo participativo. Caso contrário, ela pode afastar um ator importante no processo de reconstrução da malha social do País.
É difícil prever, entre as tantas pessoas que gostariam de se envolver com o voluntariado, as que realmente colocam sua vontade em prática e quanto tempo isso leva. Há um consenso entre especialistas, no entanto, que expectativas de solidariedade aliadas ao nível de inconformismo pessoal funcionam como fatores determinantes na duração do envolvimento do indivíduo com o voluntariado. A gestora social Tatiana da Silva Lucas Tavares de Lima, em sua pesquisa de pós-graduação, aponta cinco motivos principais que levam o indivíduo a se envolver com voluntariado: fortalecimento da cidadania; desenvolvimento pessoal; retribuição por algo que recebeu; motivações religiosas e ocupação útil de tempo.
Para Allen, o traço comum entre os voluntários é o desejo de ajudar a resolver os problemas da sociedade e de fazer diferença nos resultados. Isso tanto pode ser feito na assistência ou na defesa de uma causa. Os fatores que os movem são os mesmos em qualquer parte do mundo.
Ana Maria Domeneguetti, professora do curso de Administração de Empresas da PUC de São Paulo, autora do livro Gestão do trabalho voluntário em organizações sem fins lucrativos, revela em sua obra que apenas 20% das pessoas que iniciam alguma atividade voluntária continuam a realizar o trabalho por um longo período e o fazem com qualidade. Os outros 80% buscam o trabalho voluntário para “fazer terapia”, tendo como objetivo principal, mesmo sem se dar conta disso, a solução de seus próprios problemas emocionais. Equívocos como este inviabilizam a continuidade da ação, pois, em princípio, no trabalho voluntário doa-se apenas o que se tem em grande quantidade, seja amor, habilidades ou tempo. Quando os papéis se invertem e o voluntário busca na atividade algo que falta nele, essa relação tende a se desequilibrar. Isso não quer dizer que possam apenas fazer trabalhos voluntários aqueles em situação financeira e emocional plenamente resolvidas. Mas a inquietude tem de ser em relação ao mundo e não com a própria auto-estima.
Entre a ação pela emoção e o trabalho profissional

Na Austrália, a grande maioria dos voluntários faz atividades relacionadas à sua formação profissional. Para Allen, a cultura, religião, política e valores pessoais são determinantes na hora de se decidir por que causa lutar. No Brasil, 70 % da população adulta afirma que fazer doações ou trabalhos voluntários decorre de sua crença religiosa. “Na França, por exemplo, praticamente não se vê voluntários ou ONGs envolvidas com educação formal. Para os franceses, fornecer educação de qualidade é uma obrigação do poder público e a população não tem de interferir ou tomar para si essa responsabilidade. A noção do papel de cada um e o discernimento entre o que deve vir do poder público e da sociedade são dois fatores relevantes na hora de se escolher uma causa para atuar”, conta Allen. Em relação à influência da questão religiosa, o especialista tem um ponto de vista interessante. “Apesar de a religião aparecer como forte motivadora, os voluntários não são necessariamente mais religiosos que os outros cidadãos”.
Motivações pessoais à parte, Allen acredita que o envolvimento depende muito da situação do país e da ocorrência de questões emergenciais. Na África a Aids é prioritária. Já na Europa tende a ser vista como um problema menor. Para ele, as causas que menos atraem os voluntários são as que os fazem sentir em situação de risco. “As pessoas dificilmente se envolvem com algo de que tenham medo, apesar de o referencial de medo ser bastante individual. Nos Estados Unidos é difícil conseguir voluntários para trabalhar com presidiários, doenças mentais em estágio avançado ou doentes terminais. Acredito que no mundo todo seja assim. Isso não significa que não haja pessoas dispostas a se envolver com esse tipo de causa. Pessoalmente, não vejo nenhuma causa para a qual não se tenha voluntários.”
Um outro questionamento comum na atividade voluntária diz respeito à relação do indivíduo com a causa que o sensibiliza. O caso da Austrália, em que a maioria dos voluntários presta serviços na área de sua especialização profissional, não é regra. Para muitos, a ação voluntária pode ser uma forma de explorar outras potencialidades. Um médico não precisa trabalhar voluntariamente na área de saúde. Ele pode explorar seu lado de cantor. Não há consenso entre os estudiosos mas todos concordam que qualquer incursão na especialidade alheia deve ser feita com bom-senso e sob a coordenação de quem entende do assunto. Do contrário, os resultados podem ser desastrosos. “O mais importante é o voluntário conhecer suas potencialidades e limitações e a organização saber o que deseja dele, como recrutá-lo e como mantê-lo motivado para que possa dar o que tem de melhor. O voluntário não vem pronto e a instituição nem sempre tem tudo pronto também. É um processo de construção coletiva que exige muita flexibilidade de ambas as partes”, analisa Ayres.
Entre o ganho pessoal e a remuneração em dinheiro

Satisfação pessoal, melhoria nos relacionamentos, mudança de visão de mundo, renovação de valores, enfim a lista de ganhos emocionais e morais para o próprio voluntário é extensa, desde que não envolva remuneração financeira. Pela definição da ONU, seguida pela legislação brasileira e por diversos outros países “voluntário é o jovem ou adulto que, devido a seu interesse pessoal e seu espírito cívico, dedica parte do seu tempo, sem remuneração alguma, a diversas formas de atividade, organizadas ou não, de bem estar social, ou outros campos…”. Há ainda alguns aspectos obscuros nessa definição. Está claro que um traço característico da atividade voluntária é a ausência de remuneração. Mas é admissível a idéia de cobrir os custos desse voluntário durante o seu trabalho? E quando o voluntariado implica abrir mão de outra atividade remunerada? São ainda pontos em discussão e com opiniões diversas.
Um dos programas que mais gera polêmica nesse sentido é o próprio programa de voluntariado da ONU. Pela amplitude e complexidade dos projetos, ele costuma exigir especialização profissional e dedicação integral daqueles que se candidatam. E há uma boa possibilidade de os voluntários que se encaixem nesse perfil estarem a milhares de quilômetros do local em que o projeto é executado. Toda essa complexidade levou as Nações Unidas a instituir um valor de troca por esse trabalho voluntário, gerando alguma polêmica.
Outro tema também cercado de polêmica é o voluntariado estudantil, mais especificamente o universitário. Discute-se sobre notas ou créditos escolares como moedas de troca. Em escolas pode-se até encontrar casos de a integração em programas sociais ser obrigatória. Tais contrapartidas descaracterizam ou não o voluntariado?
O diretor do Portal do Voluntário acredita que a obrigatoriedade claramente descaracteriza o voluntariado, bem como as notas e os créditos como moeda de troca. “Fazer uma ação voluntária obrigatória ou em troca de notas na escola fere um dos pilares do voluntariado que é a espontaneidade. É um contra-senso mesmo sendo para um fim público, pois o benefício direto se torna pessoal, diferentemente dos ganhos emocionais. Há ainda os casos de profissionais recém-formados que usam o trabalho voluntário como uma ponte para conseguir um emprego remunerado. Desde que ele execute o trabalho voluntário com qualidade, não vejo essa estratégia como ruim. Se a motivação foi legítima ou não, isso depende de cada um”.
Para Ayres, a maior “linha cinzenta” como ele próprio descreve quanto ao envolvimento financeiro está nos programas que oferecem “bolsas” para os voluntários. “O programa Universidade Solidária oferece um salário mínimo para que o estudante custeie suas despesas enquanto está em campo, normalmente a centenas, até milhares de quilômetros de sua casa. Dessa forma ele não precisa gastar o próprio dinheiro para efetuar seu trabalho voluntário. Quanto a isso não vejo problema. A questão fica mais complexa quando essa bolsa começa a ter aspectos de remuneração e não de ajuda de custo”.
Especificamente sobre o programa de voluntariado da ONU, cuja ajuda de custo estabelecida é por volta de US$ 1 mil, Ayres analisa a situação sob dois aspectos. “O problema maior não é o valor, mas a procedência desse voluntário. Se tomarmos como exemplo um médico brasileiro em início de carreira com salário por volta de R$ 1 mil, R$ 1,5 mil reais, ao ser escolhido para um programa de voluntariado da ONU no próprio Brasil, para ele a ajuda de custo pode significar uma promoção. Já quando falamos de um médico com carreira estabelecida proveniente de um país rico e que entra no programa para atuar em um local inóspito do outro lado do planeta, ele tem de abrir mão de muitas coisas, inclusive de ganhos financeiros bem superiores. Então esses mil dólares têm muito mais conotação de ajuda de custo do que no primeiro caso”.
Allen concorda com a análise de Ayres. “É preciso levar em conta o quanto esse valor oferecido pela ONU é diferente da remuneração de mercado desse profissional e o que o montante significa na média de salários do país em que o voluntário vai trabalhar. Ele estará entre os ricos no local em que vai viver? Essa é uma pergunta fundamental antes de classificar a bolsa da ONU como remuneração”.
As empresas como intermediárias e incentivadoras do trabalho social

Uma nova modalidade de voluntariado surgiu no Brasil nos últimos anos com o engajamento das empresas nos movimentos sociais. É o voluntariado empresarial. Empresas estabelecem dentro de seus programas de responsabilidade social um esquema de voluntariado para seus funcionários. Esse tipo de iniciativa, se bem planejada pode trazer ganhos tanto para todos desde que sejam tomados alguns cuidados para que ele não se transforme em coação ou moeda de troca trabalhista.
Uma pesquisa do Centro Mexicano para Filantropia realizada em 2000 mostrou que um programa de voluntariado traz vantagens competitivas para as empresas. Agrega valor a produtos e serviços e otimiza, em médio e longo prazo, tanto a produção quanto as relações internas e externas da empresa. Torna até mais racional o uso dos recursos. Um estudo feito pela IBM em 188 empresas dos Estados Unidos na década de 90 mostrou que mais de 50% das companhias que implantaram programas de voluntariado reconheceram os benefícios diretos dessa ação em seu crescimento. A pesquisa mexicana prevê que programas de voluntariado deverão fazer parte, em um futuro não muito distante, da estratégia de crescimento das companhias modernas.
O incentivo das empresas para que seus funcionários se envolvam com trabalhos voluntários não precisa passar por um programa de voluntariado institucionalizado e organizado pela própria corporação. Elas podem permitir que funcionários já engajados divulguem o voluntariado no ambiente empresarial, inclusive fornecendo espaço e material para isso, por exemplo.
Nos Estados Unidos ter programas de voluntariado institucionalizados nas empresas é uma prática tradicional, talvez por isso chegue-se a taxas de 50% da população adulta envolvida com voluntariado. No Brasil, esse trabalho ainda dá seus primeiros passos apesar de alguns programas já terem, em pouco tempo, se consolidado.
Para Maria Amália Del Bel Munerati, consultora do GEAV – Grupo de Estudos da Ação Voluntária, os programas de voluntariado empresarial têm de ser desenvolvidos com o mesmo padrão de qualidade dos produtos ou serviços que a companhia coloca no mercado. “O que antes parecia modismo começa a ter características de cidadania, o que leva a empresa e as pessoas que estão nela a enraizar novos valores, fortalecer vínculos com a comunidade e desenvolver seus próprios recursos humanos”.
Assim como nos projetos sociais, os programas de voluntariado empresariais não têm receita única, mas prescindem de princípios básicos. O primeiro deles, segundo Maria Amália, é ser de participação espontânea. O segundo é que não haja compensações, como cesta básica, ou algum tipo de promoção ou privilégio em troca do voluntariado. “Isso caracterizaria contra-partida, o que não deve existir em um trabalho voluntário”, explica.
Outro nó que pode ser encontrado com freqüência em um programa de voluntariado empresarial é quanto àqueles funcionários que já tinham atuação social antes do programa corporativo ter sido implantado. A ação voluntária desses funcionários pode ser focada em causas ou projetos diferentes daqueles em que a empresa resolveu participar. Ele também é um voluntário e não pode se sentir coagido a trocar a atividade social na qual já está engajado pelo voluntariado da empresa.
Para a consultora, a solução nesses casos está na integração. Esse voluntário, mesmo atuando em uma outra causa ou organização deve ser incluído nas atividades de capacitação e nas discussões sobre projetos sociais do programa de da empresa. E até verificada a possibilidade de ele trazer coisas novas para o projeto empresarial ou haver trocas, sejam elas quais forem. “Para isso a empresa tem de estar verdadeiramente engajada”, avalia.
“Independentemente da origem, da causa social e do tipo de voluntariado praticado o mais rico de tudo é poder, de alguma maneira, colocar na mesma luta por uma sociedade mais justa o ativista do Greenpeace e a senhora da quermesse. É a conexão de vários mundos por um fim maior. E o melhor: com as pessoas agindo por vontade própria”, conclui Ayres. Dona Margarida e Juliano assinam em baixo.
Princípios para quem quer ser voluntário:

1. Todos podem ser voluntários
2. Voluntariado é uma relação humana, rica e solidária
3. Trabalho voluntário é uma via de mão dupla
4. Voluntariado é ação
5. Voluntariado é escolha
6. Cada um é voluntário a seu modo
7. Voluntariado é compromisso
8. Voluntariado é uma ação duradoura e com qualidade
9. Voluntariado é uma ferramenta de inclusão social
10. Voluntariado é um hábito do coração e uma virtude cívica
Fonte: Dez dicas sobre voluntariado, de Miguel Darcy de Oliveira

População adulta envolvida com voluntariado

País Percentual
Estados Unidos 50%
Alemanha 34%
Irlanda 33%
Peru 31%
Japão 25%,
Brasil 25%
Holanda 24%,
Argentina 20%
México 10 %
Fontes: Civil Society Consultin GroupVoluntariado – Impacto na construção de uma sociedade melhor – de Tatiana da Silva Lucas Tavares de Lima

Mensuração do voluntariado em valores

Região US$
Estados Unidos 675 bilhões
Europa 500 bilhões
Japão 282 bilhões
Fonte: Johns Hopkins University – 1995

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