No século 18, Adam Smith fundamentou sua teoria econômica no “princípio do egoísmo”, segundo o qual a partir da busca pelo ganho individual uma “mão invisível” direcionaria o desenvolvimento da sociedade. A competição geraria naturalmente produtos de qualidade com preços justos. E a disputa entre o desejo do patrão de pagar menos e o do empregado, de ganhar mais, levaria a um saudável equilíbrio de forças, desde que o acordo final não estivesse abaixo do valor necessário para um trabalhador viver com dignidade. “Nenhuma sociedade pode florescer e ser feliz se a maior parte de seus membros é pobre ou miserável”, pregava Smith, inaugurando um discurso que, na essência, 200 anos depois, seria a base dos que defendem a responsabilidade social nas empresas.
A primeira constatação é que a “mão invisível” do sistema capitalista não operou exatamente como previa Smith. Pelo menos não no Brasil. Apesar de ser a 12a economia do mundo, o País ocupa uma desconfortável 65a posição no ranking do IDH — Índice de Desenvolvimento Humano e é um dos campeões da desigualdade social. O confronto com estatísticas tão eloqüentes talvez explique por que o movimento de responsabilidade social empresarial cresceu tanto no Brasil, especialmente nos últimos cinco anos.
“A empresa afeta e é diretamente afetada pelas desigualdades sociais”, afirma Cláudio Boechat, professor da Fundação Dom Cabral (MG). “Ela tem participação relevante no desenvolvimento social, pois suas decisões impactam a vida de muitas pessoas. Deste modo, tem sim muita responsabilidade. Não apenas na geração de lucro para os acionistas, como quer o economista Milton Friedman, da Escola de Chicago. Mas para com toda a sociedade”, afirma.
Os números fazem crer que cada vez mais empresas demonstram interesse em assumir compromisso com o desenvolvimento social de suas comunidades.
Os dilemas da dissonância discurso-prática
No final de abril, o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social comemorou o seu milésimo associado. Esta marca, alcançada em menos de sete anos, revela a força de um movimento cuja causa faz mais adeptos entre empresas do que qualquer outra no Brasil. Criada em 1998, por iniciativa de um grupo oriundo do PNBE—Pensamento Nacional das Bases Empresariais, a organização, que começou com 11 associados, deixou de ser vista como uma pequena ação entre amigos — empresários “poetas e sonhadores” – para se transformar em referência no processo de revisão do papel social das empresas.
Embora não certifique nem forneça selos, o Instituto Ethos recebe, em média, um novo associado por dia. Pertencer ao seu quadro equivale a ingressar em um seleto clube de “empresas do bem.” Mas não confere a ninguém atestado de bons antecedentes. Nem assegura, por decreto, a condição de socialmente responsável.
Em recente pesquisa interna, o Instituto Ethos concluiu que a maioria dos seus associados encontra-se ainda no primeiro dos quatro estágios previstos pelos seus indicadores. Na prática, isso significa que estão longe de serem considerados socialmente responsáveis. Ainda engatinham em questões relacionadas ao público interno, a valores e transparência, a fornecedores, a clientes, ao governo e à sociedade, ao meio ambiente e à comunidade.
Uma das críticas normalmente feitas ao movimento de responsabilidade social no Brasil é a de que o discurso saiu na frente, em velocidade de Ferrari, e as práticas seguem atrás, na de um fusquinha. A dissonância discurso-prática constitui foco de controvérsias e debates acalorados entre céticos e crentes. Os que, por princípio, não acreditam em empresas e em nada do que venha delas, acham que responsabilidade social é o recheio de um discurso bonito mas desvinculado de práticas. Tendem a desconfiar da sinceridade das empresas pelo tema. E, na defesa de seu ponto de vista, utilizam argumento semelhante ao de Ray Anderson, CEO da Interface, uma das maiores fabricantes de tapetes do mundo, no polêmico filme The Corporation, em cartaz nos cinemas brasileiros: “Tenho dúvidas se as empresas estão interessadas em ser socialmente responsáveis ou em ser identificadas como tais”.
Exatamente como sugere uma forte metáfora do filme, empresas seriam, na visão dos mais céticos, “Godzilas disfarçados de Bambi”, que utilizam um discurso crescentemente aceito pela sociedade para fortalecer sua imagem. Os céticos estão também dentro das empresas: há nelas quem comungue da crença da Escola de Chicago e considere o assunto de importância marginal, alegando que distrai a atenção de preocupações mais relevantes além de gerar custos que a sociedade ainda não está disposta a pagar.
Os que crêem na idéia da responsabilidade social como modelo mais sustentável de negócios atribuem o discurso a uma espécie de estágio inicial. E o vêem, portanto, como sintoma positivo: se as empresas estão falando publicamente e desejando associar sua imagem ao tema é um sinal de que querem assumir compromisso. Para eles, o discurso é o primeiro passo no processo de construção do comportamento socialmente responsável, algo que não ocorre do dia para noite, na medida em que implica mudanças culturais importantes do topo ao chão de fábrica. “Não acho que exista uma dissociação entre discurso e prática. As dificuldades que vivem nossas empresas são típicas da realidade de carências do País. É muito mais demorado e trabalhoso uma empresa brasileira sair do estágio 1 para o estágio 4, do que para uma empresa alemã. A implantação da responsabilidade social é um processo contínuo de aprendizado, sem fórmulas prontas, mas com soluções que precisam ser construídas segundo as peculiaridades e o ritmo de cada organização”, alega Boechat.
O desafio das empresas brasileiras está no estágio do “como fazer”
Na avaliação do Instituto Ethos, um dos grandes desafios da responsabilidade social no Brasil é ampliar as práticas consistentes em um número cada vez maior de empresas. E embora grande parte das empresas esteja no nível 1, há um sentimento de que já se percorreu um pedaço significativo da caminhada inicial. No “processo contínuo de aprendizagem” sugerido pelo professor da Fundação Dom Cabral, algumas etapas foram cumpridas, até mesmo na consolidação do discurso. Hoje, por exemplo, os ideólogos do movimento já não precisam mais justificar a todo momento a importância da responsabilidade social, associando-a a “ganhos concretos” como melhoria do relacionamento com os stakeholders, fortalecimento da reputação ou atração e retenção de talentos As empresas já sabem “por que fazer”. Questões como transparência, boa governança corporativa, respeito ao meio ambiente e bom relacionamento com a comunidade passaram a ser incensadas segundo uma nova lógica de mercado e hoje contam pontos na valorização de ações, nos acordos comerciais internacionais, nas tomadas de empréstimo bancário e nos contratos de parcerias público-privadas. Transformaram-se em requisitos básicos para sucesso em qualquer negócio.
Do mesmo modo, as empresas também já sabem “o quê fazer”. Afinal, nunca se formou tanta massa crítica quanto nos últimos cinco anos. Hoje elas dispõem de cerca de 20 ferramentas que, em conjunto ou isoladamente, possibilitam a implantação de práticas de responsabilidade social.
O desafio parece estar no estágio do “como fazer”. E não é – como se supunha – um desafio técnico, mas de natureza cultural. A implantação de práticas de responsabilidade pressupõe mudanças de atitudes historicamente ignoradas nas empresas, requer uma revisão profunda de valores humanos sublimados pela lógica do lucro, exige buscar a conciliação de interesses quase sempre tratados como antagônicos e implica enfrentar dilemas éticos, como, por exemplo, o de que, em nome do lucro imediato, não se deve desrespeitar pessoas, agredir o meio ambiente ou comprometer a qualidade de vida das futuras gerações.
Coerência: da porta para fora e da porta para dentro
Para muitas empresas, o conceito de responsabilidade social já não está mais restrito –como se observava nas primeiras discussões – ao desenvolvimento de projetos sociais. Construir práticas voltadas para funcionários, clientes, fornecedores, governos, sociedade e meio ambiente passou a ser desafio permanente para organizações compromissadas com um novo modo de pensar os seus negócios. Coerência parece ser uma palavra-chave nesse processo. Na opinião de Olinta Cardoso, superintendente da Fundação Vale do Rio Doce, não adianta uma empresa ter um bom projeto para a comunidade se não aplica princípios de responsabilidade social no negócio como um todo. “Oferecer programas educacionais mas continuar se aproveitando do poderio econômico para forçar uma negociação unilateral com fornecedores revela uma contradição inaceitável”, diz.
Para Olinta, o conceito da responsabilidade social, assim como o de ética, não pode ser incorporado pela metade. É preciso ser ético e socialmente responsável da porta para fora. E também da porta para dentro, onde se exercita a coerência da relação discurso-prática junto aos funcionários. “Um crescente número de empresas compreendem a necessidade de ser socialmente responsáveis, mas muitas continuam, inspiradas na idéia da produção com o menor custo possível, oferecendo condições de trabalho ruins e baixos salários”, argumenta Deborah Leipziger, da SAI- Social Accountability International, entidade responsável pela SA 8000, certificação internacional relacionada à qualidade de gestão de recursos humanos.
José Paulo Soares Martins, diretor do Instituto Gerdau, concorda que, nesse campo, ainda há incoerência entre o que as empresas dizem e fazem. Mas não acha que o quadro seja grave no Brasil ” Sou otimista em relação a este tema. Na empresa, temos participado da formação de pequenos negócios e de empreendedores, entre os quais percebemos novas condutas éticas. Está nascendo uma geração de dirigentes com boa formação e valores firmes”, afirma.
Para Leonardo Gloor, gerente de Programas Especiais da Fundação Belgo-Mineira, a idéia de que seja possível ter responsabilidade social da porta para fora corresponde a uma visão míope que tem os dias contados. O que ainda a mantém é –acredita – a lógica do custo baixo para gerar lucro alto e de curto prazo. Mas quando os funcionários percebem que esta idéia, levada ao extremo, e desprovida de princípios éticos, pode prejudicar o gerenciamento da cadeia de valor do negócio, novas atitudes socialmente responsáveis tendem a ser valorizadas ” A título de comprar mais barato, uma empresa pode até fazer vista grossa estabelecendo relação com fornecedor que emprega, por exemplo, mão de obra infantil. Ao fazer isso, ela está assumindo um enorme risco: o de compactuar com uma prática condenada pela sociedade, que, se denunciada, vai gerar diminuição de ativos e perdas de toda espécie para o negócio”, diz.
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