O velho desafio da gestão nas organizações de terceiro setor. Cada vez mais novo (parte 2)

O velho desafio da gestão nas organizações de terceiro setor. Cada vez mais novo (parte 2)

A influência dos apoiadores e financiadores

Nem sempre o estímulo à gestão mais profissional ocorre, como no caso do Faça Parte, exclusivamente dentro da organização, a partir do interesse refletido de seus integrantes. Muitas vezes, os diferentes públicos com os quais ela lida – governos, doadores, empresas e comunidades – exercem forte influência. Para o diretor da Fundação Kellog, organização que investe 23 milhões de dólares em projetos sociais na América latina, o financiador é um exemplo bastante ilustrativo. Mesmo aquele que apenas doa recursos, sem participação direta na concepção ou implantação do projeto, tem papel fundamental na evolução dos sistemas de gestão das organizações de terceiro setor na medida em que amplia o nível de exigência nos relatórios de prestação de contas.
“O financiador ainda não cobra o suficiente, pelo menos boa parte deles”, diz. “Na Kellog, estamos estudando novos critérios, que exijam gestão cada vez melhor das organizações. É um processo delicado, pois queremos educar e não perseguir ou inviabilizar iniciativas”, afirma Tancredi.
Na avaliação do diretor, a relação da Fundação com as organizações financiadas vem sendo marcada por confiança e flexibilidade. Flexibilidade com limites, é verdade, para não perder o foco. Em seus contratos, ela permite, por exemplo, mudanças no plano financeiro durante a realização do projeto – desde que devidamente justificadas –, exige planilha orçamentária bastante simples e não cobra resultados imediatos. Por mais bem intencionada que seja – enfatiza Tancredi – esta linha de atuação demonstra uma certa fragilidade. “Nas auditorias que fizemos no Brasil até hoje não se verificou desvio de dinheiro. Mas isso também não quer dizer que os recursos concedidos tenham sido administrados da melhor forma.” Segundo o dirigente, a intenção da Kellog de induzir mudanças nos processos de gestão de entidades pode ganhar mais força se puder contar com uma ação semelhante de outros financiadores.
“É complicado quando um projeto tem vários apoiadores, cada qual com um nível de exigência diferente quanto à apresentação de dados, o detalhamento das ações e do uso do dinheiro”, argumenta. “Todos os apoiadores envolvidos em projetos com mais de uma fonte de financiamento deveriam se reunir para estabelecer padrões ou, ao menos, critérios mínimos para os relatórios. Não falo de esquemas complexos e de difícil compreensão ou que atrapalhem a execução do projeto. Muito pelo contrário. O parceiro mais exigente acaba sempre sendo visto como o mais desconfiado e aborrecido, em vez de ser percebido como alguém que contribui para a melhoria da gestão do financiado”, acredita. Para justificar seu ponto de vista, Tancredi menciona o item recursos humanos, habitual em qualquer projeto de financiamento. Segundo ele, os apoiadores sempre querem saber quanto será investido, mas nunca exigem respostas sobre se os envolvidos no projeto vão receber benefícios trabalhistas ou se a organização cumprirá a legislação. A maioria não paga nem cumpre. “Quem faz o cheque deve perguntar mais, mesmo sabendo que esse nível de exigência pode aumentar o valor do financiamento. Em longo prazo, este tipo de atitude produz resultados melhores para todos os envolvidos”, acredita.
Líder sem gestão e gestão sem líder: dois problemas

Mucerino tem a mesma opinião. Quanto mais as organizações são cobradas por quem as financia – não apenas as empresas e fundações, mas também indivíduos e governos – mais aperfeiçoam os seus sistemas de gestão, melhorando o planejamento, a qualidade dos serviços prestados, a comunicação, o cumprimento das metas e a avaliação de seus resultados. “Foi-se o tempo do ‘porque sou do bem não devo ser questionado’. Prestar contas é uma questão de seriedade, um dever básico para com os financiadores e a sociedade. As organizações devem mostrar detalhadamente o que fazem, como fazem, quanto e como gastam os recursos que captam, sob pena de prejudicarem o seu patrimônio de credibilidade”, destaca o consultor. “Boa parte delas é transparente apenas nos itens exigidos no relatório do financiador. Não fazem uma avaliação real de suas atividades, não analisam a eficácia de seus resultados e, na maioria das vezes, sequer recolhem dados suficientes para tanto. Com o tempo, este comportamento provoca um caos na gestão”, afirma Tancredi.
O coordenador do Gesc e o executivo da Kellog concordam ainda em outro ponto muito específico: nada adianta boa gestão sem liderança. “Gestão é importante, mas liderança é fundamental. Líder carismático, com garra e comprometimento, continua sendo o elemento propulsor do terceiro setor”, diz Mucerino. ” Tanto líder sem gestão quanto gestão sem líder podem levar a um desequilíbrio. No futuro isso será questão de sobrevivência para uma organização social”, completa Tancredi.
Para o coordenador do Instituto Fonte, empresas e parceiros contribuem muito para a melhoria da gestão das organizações quando as provocam com as “perguntas certas”. Quanto mais profundos forem os questionamentos, mais consistentes e emancipatórias tendem a ser as respostas. De acordo com Paula e Silva, os principais problemas internos de gestão das organizações decorrem exatamente da falta de reflexão sobre os temas que definem a sua identidade ou ainda da ausência de equilíbrio entre a reflexão e a ação. “Quando se prioriza o fazer, acaba-se caindo inevitavelmente no ativismo. Por outro lado, quando se prioriza o refletir, descamba-se para o academicismo. O equilíbrio entre um e outro ponto constitui fator de êxito. As organizações equivocam-se porque não refletem sobre os seus vícios, os modelos que escolhem às vezes inconscientemente. Antes de se aplicar qualquer conceito de gestão, faz-se necessário discutir o que ele significa, em todas as suas variáveis, para a organização e cada um dos seus integrantes. Será que a compreensão de termos como planejamento, marketing e avaliação é a mesma para todos?”, ensina.
Segundo Paula e Silva, reconhecer os limites e pedir ajuda em gestão aos apoiadores é atitude nobre por parte das organizações de terceiro setor. Em vez de esconder o que não está bom, para se afastar do conflito e do julgamento, os líderes devem aproveitar as situações de dificuldade para crescimento próprio e do seu trabalho. Ao contrário do que se imagina, solicitar auxílio técnico não revela fragilidade. Mostra que a organização está aberta para aprender e mudar.
Gestão ou profissionalização: conceitos iguais ou distintos, divergentes ou complementares

É voz cada dia mais corrente entre líderes e gestores sociais que, face aos novos desafios contextuais, o nível de profissionalização da gestão das atividades definirá a saúde de uma organização da sociedade civil no futuro. No início da década de 90, esta idéia começou a ser defendida por gente de peso, como o professor Lester Salamon, da Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Mas o que significa, na prática, profissionalizar a gestão? Gestão e profissionalização são a mesma coisa? Implantar ferramentas é fazer gestão profissional? Para o coordenador do Instituto Fonte, estas são perguntas cujas melhores respostas encontram-se em processo de construção conceitual no Brasil.
“A discussão sobre profissionalização deixa claro que o que se tem hoje não é suficiente. Não há uma compreensão única sobre até onde vai o conceito”, ressalta Paula e Silva. “Profissionalização é mais abrangente que gestão. Entre os pesquisadores do Fonte observo uma tendência de considerar profissionalização como a aplicação de ferramentas de gestão acrescida por boas práticas de gerenciamento. Isso pode dizer tudo e não dizer nada, dependendo do entendimento que se faz. Temos discutido também profissionalização como uma forma de amadurecer o trabalho em níveis cada vez mais complexos, que exigem, portanto, conhecimentos mais aprofundados do que quando as coisas eram resolvidas no improviso. Aqui podemos falar de ferramentas de gestão e de concepções de desenvolvimento. A fronteira entre a gestão e a profissionalização pode ter relação com o ponto em que algo deixa de ser controlado. A gestão engloba o que podemos controlar. Mas no social, lidamos com situações que não são controláveis, apresentam dinâmicas contínuas e múltiplas influências”, conceitua.
Na opinião de Paula e Silva, mais importante do que discutir um conceito genérico para gestão profissional é cada organização formar massa crítica a respeito do seu conceito específico, elaborando os modelos mais afinados com a sua identidade. Quanto mais autênticos forem os modelos, e quanto mais favorecerem a ação com reflexão, mais eficazes eles serão. “As rápidas e importantes transformações observadas no contexto do terceiro setor brasileiro têm levado as instituições a criarem conceitos próprios a partir das novas ferramentas que lhes são apresentadas. Algumas provocam medo, como o marketing e a avaliação. Muitas pessoas pensam que elas as distanciam dos valores que acreditam. Na verdade, são práticas que amadurecerão aos poucos, quanto mais a ação vier acompanhada de reflexão”, diz.
Para provar a sua tese de que as organizações devem construir o seu próprio modelo de gestão, o coordenador do Instituto Fonte cita o caso dos Alcoólicos Anônimos. O êxito desta organização voltada para a recuperação de dependentes de álcool – afirma Paula e Silva – não tem nada a ver com o uso e a aplicação de ferramentas empresariais. Movimento absolutamente voluntário, liderado por seus beneficiários, os AA funcionam só com contribuições físicas de seus próprios membros, não admitem qualquer influência externa e mesmo assim contam com mais de 180 mil grupos e aproximadamente cinco milhões de integrantes em todo o mundo. “Fico pensando o quanto aproveitamos esse tipo de experiência para aprender e questionar os nossos princípios. Não a defendo como uma espécie de organização ideal. Mas acho que ela se contrapõe um pouco à idéia de bussiness que sutilmente tenta ser trazida para o campo social. Os AA têm o seu valor, principalmente para nos fazer refletir: que tipo de organização social estamos formando e por quê?
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Um modelo de gestão, segundo Drucker

Quando em 1990, o consultor norte-americano Peter Drucker, autor entre outros livros, de Sociedade Pós-Capitalista (1993) criou a fundação que leva o seu nome, muitos líderes do terceiro setor dos EUA o procuraram para solicitar apoio em gestão. Especialmente os de organizações de pequeno porte, sem recursos para contratar consultores, pediram-lhe que criasse um método de planejamento, simples e auto-explicativo, capaz de ajudá-los a avaliar o trabalho que fazem, como e por que o fazem. Diante da demanda, o famoso consultor de Claremont estabeleceu a primeira prioridade de sua Fundação: a elaboração de um manual de auto-avaliação.
Transformado em livro, o manual de Drucker constitui hoje uma das principais referências bibliográficas para gestores sociais em todo o mundo. O segredo do seu sucesso está, sobretudo, na síntese das cinco perguntas-chave em torno das quais se estrutura e nas respostas oportunas que elas estimulam: Qual é a nossa missão? Quem é o nosso cliente? O que o nosso cliente valoriza? Quais são os nossos resultados? Qual é o nosso plano?
“As respostas são importantes. Os gestores sociais necessitam delas porque necessitam de ação. Mas a questão fundamental consiste em formulá-las”, disse. Segundo Drucker, o manual de auto-avaliação se propõe a incentivar reflexões internas, levando os gestores a estabelecer prioridades, a fazer escolhas estratégicas e a descobrir as melhores decisões a serem tomadas. Obrigam a organização a concentrar-se na sua missão, repensando os serviços prestados a partir da ótica de quem os recebe.
Ao ser questionado, certa vez, por que o manual fazia tanto sucesso, em todo o mundo, o ex-professor da Escola de Pós-Graduação de Negócios da Universidade de Nova Iorque, respondeu: “Por que as pessoas gostam do que é simples e do que funciona.”
A onda de capacitação: para todos ou para uma minoria?

O movimento de profissionalização da gestão de organizações de terceiro setor fez surgir no Brasil uma “onda de capacitação”, com programas que vão desde os de curta duração, ministrados por ONG’s, até cursos mais sofisticados de pós-graduação e MBA’s.
O diretor da Kellog considera-os válidos. “A profissionalização das novas gerações de líderes é uma ferramenta útil para implantar sistemas de gestão eficientes nas organizações. Líderes mais bem preparados, e sem as resistências das velhas gerações, têm muito a contribuir com a atividade social no País.” No começo dos anos 90, a Kellog chegou a ter um programa de educação do qual podiam participar organizações, principalmente as menores e mais novas, independentemente de terem ou não seus projetos financiados. Com o aumento dos programas de capacitação, oferecidos por escolas de qualidade, a Fundação abriu mão deste tipo de atividade . E voltou a se concentrar em seu foco principal de atuação, o financiamento. Ainda hoje, dedica-se a orientar os parceiros em questões relacionadas à gestão. Mas, em vez de projetos próprios, prefere recomendar bons programas disponíveis no mercado ou mesmo financiar experiências de capacitação.
O executivo do Gesc – e este é um dos objetivos da organização que coordena – também classifica como “positivo” o movimento de capacitação. Mas receia que ele acabe privilegiando um grupo pequeno, exatamente aquele que dispõe de recursos financeiros para pagar os cursos oferecidos. Para ele, “os processos de inserção das ferramentas e dos sistemas de gestão devem evitar o risco de deixar os pobres mais pobres e os ricos, mais ricos”. “Precisam atingir todos. Não se pode, por exemplo, restringir a capacitação a cursos de MBA porque as organizações pequenas ficam excluídas. Não se pode também ensinar ferramentas aplicáveis apenas em grandes organizações. Elitizar a gestão não adianta nada. Por outro lado, melhorar o acesso às oportunidades de capacitação não pode ser confundido com reserva de mercado para incompetentes”, afirma.
Maria Lúcia compartilha das preocupações de Mucerino. “Para que esse processo se concretize no Brasil, vejo a necessidade de criar ferramentas mais simples, principalmente quanto ao gerenciamento dos recursos financeiros. Noto em alguns casos, uma lacuna entre os grandes teóricos e os que colocam a mão na massa nas pequenas organizações ou nas compostas por pessoas com menos formação escolar. Uma lacuna baseada nas dificuldades de linguagem e diálogo. Ainda falta um primeiro degrau nessa escada, que só poderá ser construído quando quem ensina puder estimular, com abordagens mais básicas, quem aprende”, finaliza.

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