Especial – O velho desafio da gestão nas organizações de terceiro setor. Cada vez mais novo (parte 1)

Especial – O velho desafio da gestão nas organizações de terceiro setor. Cada vez mais novo (parte 1)

Boas intenções não são suficientes para quem quer atuar bem no terceiro setor. Um dos primeiros a fazer esta afirmação, que depois viraria um bordão entre os que defendem a gestão profissional em organizações da sociedade civil, foi o professor norte-americano Peter Drucker, em 1990, autor de mais de 30 livros, entre os quais o famoso A Administração da Organização sem Fins de Lucro.
A origem da frase talvez explique, em alguma medida, o mal estar e a resistência provocados por sua premissa central em muitos círculos de entidades filantrópicas e assistenciais. Pregada pelo mais influente especialista em management do século 20, mestre de várias gerações de grandes dirigentes empresariais em todo o mundo, a idéia da gestão profissional foi vista, desde logo, no Brasil como uma espécie de imposição da lógica empresarial sobre uma atividade de natureza social, uma tentativa improvável de misturar água e óleo. Deste modo, causou estranhamento e gerou anticorpos entre os gestores de organizações, em sua grande maioria formados nas ciências sociais.
Conceitos e ferramentas até então inéditos no trabalho social como eficácia e eficiência, ou ainda planejamento estratégico, avaliação de resultados, elaboração de projetos, marketing e captação de recursos despertaram reações distintas, de adesão e de aversão, nunca de indiferença. De um lado, uma pequena fração do universo hoje avaliado em 276 mil instituições sem fins de lucro aquiesceu à nova demanda e ingressou na “onda de capacitação” (ver quadro), procurando participar dos cursos que passaram a ser oferecidos em universidades e organizações da sociedade civil. De outro, uma grande maioria permaneceu à margem, por desconfiança da efetiva contribuição do novo instrumental ou por convicção de que não deveria se render a um tipo de visão aparentemente antagônico.
É certo que este embate travou-se em um campo ideológico, no qual se opuseram duas forças: os “avessos” à intromissão da “lógica empresarial”, e os chamados “gerencialistas”, ciosos de que uma gestão adequada poderia melhorar o impacto das atividades sociais no País. Na defesa de seus pontos de vista, um e outro movimento cometeram excessos. Como em um ato de resistência, muitos “avessos” fecharam os olhos para evidências de bons resultados. Como forma de ostentar conhecimento, os “gerencialistas” ensinaram muito mais do que deviam ou do que era necessário. O tempo tem provado, como na máxima shakesperiana, que a verdade não está nos extremos, mas no meio. Os conceitos e ferramentas de gestão não representam necessariamente, como querem os “avessos”, um “desvio” da ação principal, uma sobreposição dos meios sobre os fins, ou a invasão de valores que diminuem a importância original do trabalho. Mas também não significam a panacéia para todos os males que afligem as organizações, como parecem defender os generalistas. Muito menos são mais importantes do que as finalidades a que se destinam. Compõem, como bem definiu Drucker, ” um instrumento para as organizações se concentrarem em cumprir melhor as suas missões” (ver quadro) . E nesse sentido, justificam-se. “Um fato consumado – e muito saudável – no ambiente de hoje é a exigência de que as organizações de terceiro setor assumam responsabilidades. As vidas transformadas são a ‘última linha’ do trabalho delas. Cada missão deve ser pensada em termos de resultados, e a organização precisa documentar o efeito que está produzindo na sociedade e na vida dos indivíduos. As pessoas não estão mais interessadas em saber simplesmente “É uma boa causa?”. Elas querem ver compromissos e competência – uma demonstração de realização e progresso de uma organização responsável e eficaz”, afirmou.
Resistência ao modelo pronto, imposto “de fora para dentro”, sem apropriação crítica

Na opinião de Antonio Luiz de Paula e Silva, coordenador do Instituto Fonte para o Desenvolvimento Social, a resistência colocada pelas organizações deve-se ao fato de que os conceitos e ferramentas são quase sempre tratados como uma contribuição “de fora para dentro”. E assim acabam sendo vistos como uma imposição, não uma tomada de consciência interna. Geram uma expectativa inicial de que, porque vêm de fora, vão trazer um modelo pronto e infalível para a solução dos dilemas práticos da organização. Mas como não são apropriados por seus integrantes, na medida em que desconsideram as suas particularidades, os seus problemas específicos e o seu modo de lidar com eles, tornam-se corpos estranhos.
A resistência, para o especialista, tem, no entanto, um lado benéfico. “Ajuda a preservar autenticidade na construção de um modelo próprio de gestão. Não existe um formato único. Cada organização precisa encontrar o seu”, defende. Mas ela também é – segundo Paula e Silva – um modo peculiar de enfrentar os próprios limites diante das mudanças que se fazem necessárias com o amadurecimento dos compromissos, das responsabilidades e do trabalho. “É difícil para o líder de uma organização reconhecer que seus conhecimentos ficaram insuficientes e que, em um novo cenário, ele já não consegue mais ver o que precisa fazer. Adquirir novas capacidades torna-se imprescindível. Mas não é uma decisão simples. Decorre de um processo humano de amadurecimento, gradual, nem sempre linear. De nada adianta mudar as ferramentas, se as concepções permanecem as mesmas. O indivíduo pode até fazer um curso de planejamento, de avaliação ou de captação de recursos, mas se não promover mudanças internas, não olhar o mundo de forma diferente, nada do que aprendeu será posto em prática”, ensina. “Será que dá para transformar o mundo sem promover uma transformação interna?”, responde com uma pergunta.
Na avaliação de Paula e Silva, embora seja um ato de auto-proteção, resistir às mudanças costuma provocar sofrimento. A dor vem – segundo o especialista – do apego a práticas passadas que já não funcionam mais frente aos novos e crescentes desafios. Mas também se origina da constatação de que, por melhores que pareçam ser, as boas práticas de gestão profissional, quando aplicadas automaticamente e sem crítica, se propõem a “corrigir” as imperfeições do que, na verdade, representa um modo autêntico de atuar na defesa de sua causa. “Nenhuma iniciativa social é perfeita. Mas, ainda que não disponha de um método absolutamente funcional, qualquer organização de terceiro setor tem um jeito peculiar de abordar o problema. Este jeito lhe confere identidade. Por isso, há tanta resistência aos conceitos e ferramentas de gestão. Porque ao implantá-los, com o apoio de alguém de fora, acaba-se fazendo um julgamento rígido do que falta na organização, sem valorizar o que ela tem, isto é, suas qualidades e potencialidades. Uma prática de gestão profissional pode ser boa, mas superficial e insuficiente, se não considerar a dinâmica e as escolhas inconscientes, impulsivas e reativas de uma organização”, diz.
Os modelos inflexíveis, a lógica auto-referente e a inspiração empresarial

Do quadro apresentado pelo coordenador do Fonte, é possível concluir que o principal foco de resistência à gestão profissional está no fato de que os modelos ou práticas disponíveis são, regra geral, inflexíveis, operam uma lógica vertical e auto-referente e impõem, na forma de padrão, o que consideram o modo certo de trabalhar. Padrões impostos carregam naturalmente o pecado da arrogância. Ainda mais quando quem os definem são especialistas ligados a um campo de conhecimento diferente – o da administração de empresas –, têm pouca ou nenhum experiência com ação social e supervalorizam o seu conhecimento em detrimento do das organizações que se propõem a apoiar. Muito provavelmente a oposição dos gestores sociais não se dê em relação às idéias, aos conceitos, aos termos, às métricas e a alguns princípios emprestados do segundo setor. Mas ao modo como eles foram introduzidos nas organizações. “No começo dos anos 90, as empresas e organizações sabiam pouco umas das outras. Cometia-se um erro estratégico de acreditar que o conceito de gerir empresas podia ser replicado integralmente”, conta Luiz Alexandre Mucerino, presidente da associação de MBAs da Faculdade de Economia e Administração da USP, que coordena o Gesc – Gestão para Organizações da Sociedade Civil, programa voluntário de capacitação. “Quando saímos para a primeira consultoria social do Gesc, há pouco mais de dez anos, percebemos que a maioria das instituições torcia o nariz. Achavam que a empresa vinha tomar de assalto seu trabalho. Foi então que fizemos uma parceria estratégica com a Promove, organização paulistana que atua na área de educação. Dávamos consultoria de gestão para ela que, por sua vez, nos iniciava nas particularidades do terceiro setor”, conta.
Segundo Mucerino, além de importante exercício de humildade, conhecer o terceiro setor por dentro – e não por observação externa – foi fundamental para que os consultores do Gesc revissem posições, visões estereotipadas e falsos conceitos. A natural tendência de achar que o que tinham a ensinar era exatamente o que as organizações precisavam aprender ruiu diante de uma análise mais detida de expectativas e necessidades. Primeira lição aprendida: é um equívoco achar que as organizações não sabem nada sobre gestão pelo simples fato de que muitos de seus líderes não estudaram administração de empresas. Sabem sim. Não é porque não compreendem termos como plano, estratégia, marketing, metas e eficácia, por exemplo, que elas não façam gestão. E, em alguns casos, até muito bem. A diferença está no tipo de conhecimento que orienta suas práticas. Na maioria delas, prevalece o conhecimento tácito sobre o explícito. “Se as organizações sobreviveram até aqui, e muitas até cresceram, é evidente que, de algum modo, fizeram algum tipo gestão. Mas uma gestão intuitiva, informal, desprovida de fundamentos técnicos que só agora começam a ser incorporados. Ficava tudo na cabeça do líder que tomava decisões sem dados e informações documentados”, lembra o consultor do Gesc.
A “documentação” a que se refere Mucerino é, a rigor, a mesma da frase de Drucker, na abertura desta matéria. Consiste no conjunto de registros que permite ao gestor avaliar minimamente o que a organização está fazendo, como e por que está fazendo e o que deve fazer para melhorar o desempenho dos serviços prestados. Gerir sem essas informações é o mesmo que dirigir no escuro. Sem os dados referentes a orçamento, evolução estatística dos atendimentos, relatórios detalhados de atividades, planos, projetos, dificuldades e soluções encontradas, administrar uma organização é tarefa que beira a inconseqüência. “Dificilmente as organizações se dão conta da necessidade de documentar os registros simples”, afirma Mucerino. “Há uma espécie de tradição de as informações com o líder, às vezes extremamente centralizador. Quando ele sai da organização ou morre, ninguém sabe de nada, volta-se à estaca zero.”
A importância de escolher um modelo próprio de gestão

Feitas as devidas ressalvas, e considerados os dilemas ideológicos e conceituais, Mucerino e Paula e Silva concordam que gestão é um fator cuja importância cresce com a ampliação do terceiro setor no País, a sofisticação de seu contexto de atuação e, conseqüentemente, o amadurecimento das organizações que o compõem. “Só não pode haver mais ênfase na forma de administrar do que no problema social objeto de sua atuação. Se isso estiver ocorrendo, é hora de rever prioridades”, sentencia o especialista do Instituto Fonte. Que peso deve ser atribuído à gestão no sucesso de uma organização? Com a palavra, porta-vozes do terceiro setor colocados em lados diferentes do balcão: dois gestores, que estão com a mão na massa, e um financiador. “Não sei avaliar exatamente o peso da gestão no conjunto de nossas atividades. Mas, é claro, que a vemos como importante para atingir resultados melhores, com melhor uso dos recursos disponíveis. Se a gestão não vai bem, a coisa não anda, os trabalhos atrasam e alguns precisam ser refeitos”, afirma Maria Lúcia Meirelles Reis, uma das coordenadoras do Faça Parte – Instituto Brasil Voluntário, organização que introduziu no Brasil o conceito do voluntariado educativo.
“Em 10 anos de existência, após um processo natural de tentativa e erro, acho que chegamos a uma fase madura de gestão. Como o CDI funciona em sistema de rede, focamos tanto no intercâmbio como também no relacionamento, na troca de experiências. Muitos fatores contribuem, simultaneamente, para fortalecer os nossos elos e aprimorar a qualidade do nosso trabalho. Sem dúvida, a gestão dá um rumo a tudo isso, sistematiza e permite mensurar os resultados”, avalia Mário Vieira, coordenador da rede do CDI – Comitê para a Democratização da Informática.
“O terceiro setor não pode mais ser visto sob um prisma romântico como no período altruístico em que dependia totalmente do voluntariado. Não é lugar apenas para boas almas. Há competição, corrupção e gente de má fé. Estamos na fase de sair do limbo do voluntariado para ingressar no campo da profissionalização. E nessa transição, contar com um sistema de gestão, agir de modo efetivo, lógico e eficiente fazem diferença”, diz Francisco Tancredi, diretor da Fundação Kellog, para quem a cultura da não-gestão está arraigada no voluntariado religioso e nos chamados ativistas sociais.
De acordo com Maria Lúcia, ninguém pensava em gestão no Faça Parte quando a organização nasceu, em 2001, para promover o Ano Internacional do Voluntariado. Não havia a necessidade porque – segundo ela – “não sabíamos que vínhamos para ficar”. Decidida a continuidade dos trabalhos, foi inevitável discutir um modelo para dar sentido prático à visão de um grupo de entusiastas do voluntariado educativo. “Não nos inspiramos em modelos pré-estabelecidos, até mesmo porque o terceiro setor tem diversas vertentes que requerem sistemas diferenciados de gestão. Optamos por construir o nosso com a ajuda de um consultor”, afirma. Embora não tivesse uma idéia clara sobre o tipo de gestão a ser escolhido, a equipe desejava um modelo que privilegiasse o planejamento, a boa governança, a descentralização e a flexibilidade. “Flexibilizamos a gestão para aproveitar as oportunidades. Modelos muito rígidos, que não contemplam mudanças de rumo ou acontecimentos imprevistos, podem atrapalhar mais do que ajudar uma organização tão dinâmica quanto a nossa”, defende a coordenadora. No Faça Parte – explica – são feitas reuniões quinzenais com a diretoria, mensais com consultores e semanais com a equipe. Ao final de cada ano, diretoria e equipe executiva estabelecem planos para o seguinte e até, dependendo do projeto, para um horizonte mais amplo.
Outras duas características do modelo de gestão escolhido na organização são a descentralização e o compartilhamento de informações. “Trabalho com tudo à vista de todos. As tarefas são afixadas em um grande quadro no qual se pode acompanhar sua evolução. Cada projeto tem um responsável e, em nossas reuniões semanais, preenchemos uma ficha simples de auto-gestão a partir da qual que se consegue ter uma boa noção de como o trabalho anda e onde estão os seus eventuais nós”, diz. Com este sistema, segundo Maria Lúcia, se o responsável por um projeto precisa se ausentar, quem assume o seu trabalho consegue encaminhá-lo do ponto em que parou. A permanente troca de informações sobre os projetos contribui –acredita – para gerar conhecimento interno e envolvimento coletivo.
Já Vieira acha impossível que a maioria das organizações de terceiro setor sobreviva, daqui por diante, sem a adoção de um modelo gerencial confiável. No CDI, dada a complexidade da estrutura, optou-se pelo uso de uma ferramenta específica, o SIG —Sistema de Informações Gerenciais. O trabalho lá se desenvolve a partir de uma rede adaptativa em constante processo de aprendizagem. Há uma supervisão central, feita pelo CDI Matriz e inúmeros gestores, em comitês regionais espalhados pelo Brasil (31) e exterior (sete em países de três continentes). A eles, cabe fazer a interlocução entre a Matriz e a ponta, isto é, as Escolas de Informática e Cidadania (EICs), criadas em parceria com organizações comunitárias. É um processo muito dinâmico, pois as informações circulam em todos os níveis – desde o CDI Matriz, no Rio de Janeiro, aos outros CDIs e às EICs que eles apóiam, incluindo ainda os mantenedores e apoiadores da instituição, o conselho consultivo e os colaboradores em geral. A despeito desta grande cadeia de relações, as EICs são incentivadas a se autogerir e a se sustentar, buscando parcerias locais.
“Para implementar o funcionamento de uma máquina como esta, boa gestão é fundamental. Temos utilizado o SIG com excelentes resultados. Este sistema nos permite conhecer mais e melhor a realidade de nossa rede, o perfil das nossas escolas e o público-alvo com que trabalhamos. Com o apoio dele, obtemos informações confiáveis sobre número de alunos, computadores, educadores, aplicação da nossa proposta político-pedagógica e outros tantos dados fundamentais”, entusiasma-se.

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