Especial – Nosso futuro está secando? – parte 1

Especial – Nosso futuro está secando? – parte 1

O acesso à água tem sido alvo de conflitos desde que o mundo é mundo, ou mais precisamente, desde 8.000 A.C, quando a humanidade começou a cultivar alimentos. A disputa por este recurso, escasso em muitas regiões do planeta, é tão antiga que está na origem de uma palavra utilizada ainda hoje para designar a intolerância e a ausência de convivência pacífica entre homens. Rivalidade deriva do Latim ‘rivalis’ e significa “aquele que usa o mesmo rio que outrem”.
Sobre a água, vale lembrar o que afirmou, em documento de 2005, a organização Sustainable Development International: “Há fontes alternativas de energias. Não existem alternativas à água”. Mesmo tendo este elemento uma fórmula química simples, nunca foi possível desenvolvê-lo artificialmente.
Com as mudanças climáticas, a escassez de água pode se tornar ainda mais grave. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), das Nações Unidas, prevê que, se for mantido o atual ritmo de emissões de gases de efeito estufa,  a Terra corre o risco de ficar até 4°C mais quente em 2100. Como conseqüência dessa alteração, dois bilhões de seres humanos sofrerão com a falta de água, multiplicando o número de refugiados ambientais, que hoje já atinge 25 milhões, segundo estimativas da ONU.
A problemática da água também deverá contornar as discussões na Conferência do Clima, a ser realizada em Copenhague, para definição do acordo que substituirá o Protocolo de Kyoto.
Produzir cada vez mais com menos recursos hídricos, permitir a universalização do acesso à água potável e serviços de saneamento, criar mecanismos políticos e de mercado que proporcionem a governança compartilhada dos recursos hídricos são alguns dos desafios para assegurar a plena disponibilidade da água e, consequentemente, a vida na Terra.
De acordo com o consultor Maurício Waldman, geógrafo da USP, apesar de preocupante, a questão da água tem sido negligenciada. “A escassez de recursos hídricos é uma discussão muito recente. Para se ter uma idéia, o relatório Meadows, divulgado pelo Clube de Roma na década de 60, não cita a água em termos de escassez. Ninguém supunha que essa questão teria o aspecto crítico verificado hoje. Só depois de 40 anos, a discussão do problema ganhou corpo. Ainda assim, persiste a falsa idéia de que água é um recurso inesgotável”, ressalta.
Conflitos pela água
Essencial para a vida, a água tem usos variados e muitas vezes politicamente conflitantes. Segundo Waldman, as disputas por esse recurso já ocorrem, ainda que não sejam muito debatidas. “Conflitos vêm sendo travados pelo acesso à água em todo o mundo. Um dos elementos que determinaram a guerra dos seis dias, entre Israel e Palestina, foi o controle das águas do rio Jordão. O acesso à água também é uma das motivações das brigas entre a Turquia e a Síria e até mesmo da Guerra do Iraque. A Turquia represou as águas do rio Tigre e Eufrates. Ao alterar o fluxo dos rios, que corriam naturalmente para a Síria e Iraque, acabou por prejudicar o abastecimento nesses países”, ressalta Waldman.
O especialista lembra ainda de revoltas urbanas, como a ocorrida em Cochabamba, na Bolívia, em 2000, a partir da privatização da água que levou ao aumento de até 300% nos preços do serviço de abastecimento. No Brasil, a polêmica em torno da transposição das águas do rio São Franscisco é um exemplo dos múltiplos interesses envolvendo a gestão dos recursos hídricos.
Cerca de 70% da água consumida mundialmente, incluindo a que decorre de desvios e de bombeamento do subsolo, é utilizada para irrigação. Aproximadamente, 20% abastece a indústria e 10%, as residências.
A tomar como medida os padrões atuais, segundo os quais a produção de uma tonelada de grãos requer 1.000 toneladas de água, até 2050 estima-se que poderá não haver mais água suficiente para produção da comida necessária para atender a população mundial que, segundo projeções, será de cerca de nove bilhões de habitantes, três bilhões a mais do que hoje.
Em seu famoso livro “Ecoeconomia”, uma das mais importantes obras sobre desenvolvimento sustentável, Lester Brown aponta que o déficit hídrico mundial, medido pela extração excessiva de aqüíferos, cresce a cada ano, tornando cada vez mais difícil de ser administrado. Segundo o pesquisador, se todos os países decidissem acabar hoje com a extração excessiva e estabilizar os lençóis freáticos, a colheita mundial de grãos sofreria uma redução de aproximadamente 160 milhões de toneladas, algo em torno de 8%. Os preços, por essa razão, disparariam. Quanto mais os países demorarem a enfrentar essa questão, mais elevado será o déficit hídrico e mais custoso o ajuste final.
Para Waldman, conciliar os diferentes usos da água, tal como estão hoje distribuídos, sem riscos de escassez, é uma tarefa impossível. “O modelo de consumo de água precisa ser revisto. Ele está relacionado ao padrão de vida da civilização moderna, com uma alimentação baseada na proteína animal e consumo intenso de materiais. Hoje, desperdiça-se mais água, jogando comida fora. Para se ter uma ideia, são gastos 100 mil litros de água para produzir um quilo de carne. Com esse volume, uma pessoa pode tomar banho por quatro anos e meio”, alerta o consultor.
Em tese, o volume de água existente na Terra é farto o bastante para suprir todas as necessidades humanas. No entanto, ainda segundo o especialista, o uso dos recursos hídricos precisa ser otimizado a partir de tecnologias mais eficientes.
Na análise de Waldman, a gestão mais eficiente dos recursos hídricos utilizados pelas atividades agrícolas e pecuárias proporcionaria uma disponibilidade maior de água para consumo humano. “A agricultura ainda usa métodos perdulários. Se a atividade agrícola demandasse 10% a menos de água, dobraríamos a quantidade do recurso para uso humano”, explica.

Essa não é, no entanto, uma questão meramente técnica. A problemática do acesso à água envolve aspectos culturais e sociais. “Israel tem o melhor sistema de abastecimento, mas precisa da água da Cisjordânia. Um marroquino ou argelino necessita de 60% menos água do que um norte-americano. Em algumas áreas do nordeste brasileiro, o acesso à água é interditado por aqueles que têm poder. Portanto, a gestão dos recursos hídricos depende de instrumentos técnicos, econômicos e políticos para que atenda às suas diversas finalidades sociais”, ressalta.
Água virtual
A água utilizada na produção de um artigo agrícola ou industrial tem sido modernamente conceituada como ‘água virtual’. Em um processo produtivo, parte dos recursos hídricos empregados se perde nos esgotos e mananciais. Outra parcela é reciclada pela natureza por meio da evaporação e transpiração das plantas. Porém, uma quantidade significativa permanece no produto e acaba sendo exportada para outras regiões do mundo. Esta é a água virtual.
O Brasil é hoje o 10º maior exportador de “água virtual” do mundo em lista encabeçada pelos Estados Unidos, que anualmente vendem ao exterior em média 164 milhões de metros cúbicos de água. Entre 1995 e 1999, os EUA foram responsáveis pela comercialização no mercado internacional, de algo entre 10 e 100 milhões de m³ de água embutida em produtos. A maior parte deles teve como destino a Europa.
Como o sistema econômico não considera os serviços do ecossistema, o preço dos produtos exportados pode não compensar os gastos, no longo-prazo, para a recuperação dos mananciais e de ambientes locais. Dessa forma, as nações exportadoras acabam mais perdendo do que ganhando, especialmente se os artigos agrícolas são produzidos de forma insustentável, com danos para os ecossistemas locais, a exemplo da poluição do solo e exploração demasiada dos recursos hídricos.
Um país que sofre com escassez de água, por exemplo, pode importar produtos que demandam muita água para sua produção ao invés de produzi-los internamente. Fazendo isso, ele não só economiza volumes expressivos de água, como alivia a pressão sobre os seus recursos hídricos, tornando-o acessível para outros usos.
Segundo o Conselho Mundial de Água (World Water Council – WWC),  o comércio de água virtual tem implicações geopolíticas e induz à dependência entre países. Sendo assim, pode, ao mesmo tempo, ser um estímulo para a cooperação e a paz ou um motivo para potenciais conflitos.
Água e saúde
O relatório de 2006 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) alerta que a falta de água e saneamento mata uma criança a cada 19 segundos no mundo, em decorrência de diarréia.
Nos países em desenvolvimento, a situação tem se mostrado ainda mais crítica: por falta de água potável e saneamento, são registrados cinco bilhões de casos de diarréia por ano. Desses, cerca de 1,8 milhão correspondem a crianças  menores de 5 anos, que morrem da doença, uma desconcertante média de 4.900 por dia.

“A diarréia é a segunda principal causa de morte na infância, atrás somente das infecções respiratórias. Ainda que possa ser evitada com medidas simples, a doença mata mais do que a tuberculose e a malária;  seis vezes mais que os conflitos armados e, entre as crianças, cinco vezes mais do que a Aids”, ressalta Lineu Andrade de Almeida, presidente da ABES.
Segundo relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), 10% dos problemas gerados por doenças no mundo todo poderiam ser evitados a partir de melhor gerenciamento da água – com melhorias no sistema de fornecimento de água potável, mais saneamento e higiene.
Cerca de 60 milhões de brasileiros (9,6 milhões de domicílios), não dispõem de coleta de esgoto. Outros 15 milhões (3,4 milhões de domicílios) não têm esgotamento sanitário, nem acesso à água encanada. Além disso, apenas 25,6% dos esgotos coletados são tratados, sendo o restante lançados in natura em corpos d’água, o que contribui — segundo dados da Conferência Nacional das Cidades — para contaminar o solo, as águas subterrâneas e os oceanos.
Segundo o levantamento feito pela OMS em 192 países, no Brasil as mortes causadas por problemas relacionados à água, saneamento e higiene chegaram, em 2002,  a 28,7 a cada mil, 2,3% do total de mortes registradas no país. Andrade lembra que o custo financeiro para reduzir pela metade a proporção de pessoas sem acesso a água potável e saneamento – como prevê um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – seria de US$ 10 bilhões ao ano, utilizando-se tecnologia de baixo preço. Para universalizar o acesso seriam necessários de US$ 20 bilhões a US$ 30 bilhões ao ano, dependendo da tecnologia. “O valor de US$ 10 bilhões, porém, é menos do que o mundo gasta com armas em cinco dias e menos da metade do que os países ricos desembolsam com garrafas e copos de água mineral”, ressalta.
No Brasil, o investimento de 10 bilhões de reais ao ano, por 20 anos consecutivos, seria suficiente para universalizar o serviço de saneamento. Esse montante corresponde hoje a aproximadamente 0,6% a 0,7% do PIB brasileiro.
De acordo com importante relatório do PNUD, manter o déficit de água e saneamento custa nove vezes mais do que resolvê-lo. Só os sistemas de saúde dos países em desenvolvimento economizariam US$ 1,6 bilhão ao ano. O custo total do déficit chega a US$ 170 bilhões, ou seja, mais do que o Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina, ou 2,6% do PIB de todos os países em desenvolvimento juntos.
“Se os benefícios sociais por si não são motivadores, vamos universalizar o saneamento só para economizar. É muito mais inteligente”, provoca Andrade.

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