Negócios do bem

Negócios do bem

Por Cristiane Assis


Num antigo armazém de grãos, de 1871, hoje um charmoso centro cultural na zona portuária carioca, representantes de 38 países, 180 palestrantes e cerca de 55 acadêmicos reuniram-se por três dias para o Fórum Mundial de Negócios Sociais (SEWF 2012, na sigla em inglês), realizado em outubro, no Rio de Janeiro. Seu tema, Negócios Sociais: Investindo por Impacto, colocou em foco as estratégias para estimular a cooperação multissetorial e os investimentos nos negócios sociais – empreendimentos lucrativos criados para solucionar problemas da sociedade.

Em meio a uma energia jovem, com empreendedores de todo o planeta debatendo e transitando pelos corredores animadamente, trocando cartões e sonhos capazes de salvar o mundo, os novos ventos não vinham do modelo de negócios em si. Afinal, fazer o bem via projetos com ações rentáveis não é algo novo; muita gente de diferentes partes do mundo faz isso há décadas. A novidade é que mais gente em todo o mundo tem se reunido buscando entender como fazer mais disso e de forma mais eficiente.

O interesse crescente de investidores é um bom indicador de que o momento é auspicioso para se falar em negócios sociais, com olhos bem voltados ao Brasil, que possui muitas carências a serem supridas, mas, por outro lado, vive certa prosperidade nas classes C e D, o público-alvo desses projetos. Estima-se que, em 2011, investimentos de impacto social tenham direcionado nada menos que US$ 4,4 bilhões em 2.200 projetos no mundo, sendo mais da metade nos Estados Unidos e Canadá e o restante especialmente em negócios na Índia, Rússia, China e países da América Latina e África. Os setores preferidos foram educação, saúde, crédito e serviços básicos, como água potável e habitação, não supridos pelos governos.

“Investir em empresas que tenham não apenas o propósito de lucrar, mas também contribuir para solucionar problemas sociais, pode parecer uma boa ideia óbvia. Mas os investidores tradicionalmente têm acreditado que seu único propósito é fazer dinheiro, e se você quiser resolver um problema social deve abrir espaço para o governo ou doar para caridade”, diz Antony Bugg-Levine, autor do livro Investimento de Impacto, ex-diretor da Fundação Rockefeller e um dos destaques do Fórum. A verdade é que a maioria das pessoas não gosta de fazer experiências com seu dinheiro e oferecer um caminho “do meio” as deixa confusas.

Esclarecer essa confusão abre um potencial enorme para o setor. “Hoje, no mundo, há mais de US$ 100 trilhões disponíveis para investimentos com vistas ao retorno financeiro. Não estou dizendo que todos os investidores do mundo têm o perfil de serem sociais, mas se 1% ou 2% disso for direcionado para esses negócios, certamente eles terão muito mais recursos do que a filantropia tem hoje”, garante Levine.

Para Carina Pimenta, coordenadora de Relações Institucionais do Fundo Vale, o que se vê atualmente é um setor investidor com recursos consideráveis, aprendendo o que são negócios sociais e que há várias formas de fazê-los, de acordo com as diferentes realidades. O Fundo investiu cerca de R$ 20 milhões, entre 2009 e 2012, nesse tipo de negócio, fortalecendo cadeias de valor sustentáveis na Amazônia. No Fórum, três instituições apoiadas pelo fundo da empresa – Imaflora,  Idesam e Projeto Peabiru – apresentaram seus projetos e resultados.

A diversidade dos negócios sociais

No Brasil, negócios sociais é um tema ainda em discussão, com entendimentos e terminologias diferentes e complexas (veja box). Graziella Maria Comini, coordenadora do Centro de Empreendedorismo Social e Administração do Terceiro Setor (CEATS), da Universidade de São Paulo, afirma que a expressão “negócios inclusivos” é preponderante na realidade brasileira. Em outros países, especialmente onde há legislação específica para o setor, social enterprise (empresa social) prevalece. Também conhecido por “setor dois e meio” (2.5), trabalha nas fronteiras do segundo e terceiro setores. Inclui o terceiro porque pode ser iniciado por organizações não governamentais (ONGs) sem fins lucrativos, que financiam seus projetos por meio da venda de produtos ou serviços. Nesse caso, o lucro é obrigatoriamente reinvestido na organização.

No segundo setor, os negócios sociais representam empreendimentos, pequenos e médios, focados em melhorar as condições de vida das classes menos favorecidas por meio da venda de serviços ou produtos.

Os lucros são reinvestidos e também podem ser divididos entre os sócios, dependendo do modelo. Ainda no setor privado, inclui empresas robustas com foco nos segmentos da base da pirâmide, com a proposta de incluí-los na cadeia de consumo e produção.

Além das melhores intenções sociais, o que une todos esses modelos é o mercado capitalista. Os negócios devem funcionar sob as mesmas regras comerciais de qualquer outro empreendimento, isto é, operar pela lei da oferta e demanda e utilizar mecanismos de mercado para atingir seus propósitos sociais de forma independente dos financiados filantrópicos. Podem até receber doações no início de suas atividades – o que se mostra quase obrigatório na maioria dos casos -, mas não depender delas, já que um negócio social não deve nunca sacrificar sua vocação de ser lucrativo. Se for tão bom a ponto de crescer e lucrar, beneficiar um número crescente de pessoas e tornar-se replicável, pode-se dizer que se trata de um “negócio de impacto”.

“A beleza disso é que o teste de mercado é importante para validar o impacto social. Vemos muitos empreendedores criando projetos que julgam ser maravilhosos para uma certa população carente. Mas nem sempre são. Uma ótima métrica  para saber se algo é necessário é descobrir se a comunidade pagaria um pouco para ter acesso, ou se o governo pagaria para prover aquele serviço”, diz Daniel Izzo, do Vox Capital, um dos poucos fundos de investimento estruturados para negócios sociais no Brasil.

“É um campo novo. Uma das razões para escolhermos o Brasil como sede do Fórum Mundial é que muita gente anda fazendo coisas interessantes e inovando por aqui, mas as iniciativas ficam isoladas porque o movimento não está organizado. Não há associações, entidades, o governo não reconhece o setor, não há incentivos tributários”, explica Lee Davis, co-fundador da NESsT, organizadora do evento, que acaba de completar 15 anos de apoio ao desenvolvimento de empreendimentos sociais em 48 países, incluindo o Brasil.

Na opinião de Davis, os melhores exemplos de um sistema realmente organizado para as empresas sociais estão no Reino Unido. “Eles têm representações e uma agenda nacional para elaborar estratégias em parceria com o governo, que, por sua vez, identifica empresas sociais e cria com elas oportunidades para o desenvolvimento econômico e das populações excluídas.”

Compartilhar as perspectivas de empresas sociais e investidores, mostrando suas melhores práticas e casos de sucesso, revela-se fundamental para o desenvolvimento do setor, bem mais do que a busca por terminologias. Nas necessidades do contexto amazônico, por exemplo, onde há ausência de capital humano e pressão de representantes da economia tradicional alterando o cenário de desenvolvimento, os negócios sociais são uma alternativa importante para a economia local e uso dos ativos das florestas com manejo sustentável e geração de renda e recursos. “Para um setor como esse, com imenso potencial transformador, é fundamental que as iniciativas não se prendam muito aos conceitos de negócios sociais e como devem se comportar; mais importante é ter a sustentabilidade enraizada e apostar na diversidade. Quando o social, ambiental e econômico estão verdadeiramente presentes, as respostas e os modelos – como por exemplo se deve ou não haver distribuição de lucro – partem dessas conexões, respondem às realidades locais”, acredita Camila Pimenta, do Fundo Vale.

Casos de sucesso


A tendência de desenvolvimento dos negócios sociais nos centros urbanos pode ser exemplificada por dois empreendimentos com grande potencial de impacto e crescimento: o Banco Pérola e o Saútil, ambos apoiados pela Artemísia – desenvolvedora pioneira no Brasil que adota a terminologia “negócios de alto impacto social” -, por tratar-se de modelos escaláveis com capacidade de atingir maior número de pessoas.

Desde 2004, a Artemísia já beneficiou cerca de 45 empresas, tendo acelerado 15 negócios nos últimos dois anos, com previsão de outros 15 a 20 até 2013. “Depois de passar por uma aceleradora de negócios, o empreendedor chega mais pronto para o mercado, ele se prepara para o que vai ser avaliado e para o que o investidor espera”, explica Mariana Paál Fernandes, líder de parcerias da organização. “Os investidores estão buscando se aproximar de aceleradoras como a nossa para entender melhor essa realidade de negócios” – caso do fundo Vox Capital, hoje parceiro da desenvolvedora.

E foi exatamente assim que o Banco Pérola se tornou um exemplo emblemático de negócio social. Inspirada pelo Grameen Bank, de Muhammad Yunus, em 2009 a jovem Alessandra França, à época com apenas 25 anos, fundou uma instituição de microcrédito voltada a jovens da periferia de Sorocaba, no interior de São Paulo. Apoiada pela Artemísia e pela ONG Projeto Pérola, a organização financiou 25 empreendimentos em seu primeiro ano de existência. A história mereceu reportagem de capa na edição de dezembro de 2010 na revista Ideia Sustentável. De lá pra cá, o negócio prosperou – e muito.

Apresentado-se em inglês no Fórum Mundial de Negócios Sociais, Alessandra mostrou desenvoltura e segurança impressionantes para alguém com tão pouca idade. “Os resultados, no final de 2010, foram muito positivos: a maioria dos jovens teve sucesso em seus negócios, como cibercafés, hortifrutis, consultorias de casamentos e tantos outros empreendimentos”, contou. Em 2011, o Banco Pérola passou a apoiar 130 negócios – cinco vezes mais que no primeiro ano: o resultado continuou positivo, com uma taxa de inadimplência de apenas 2% e agregando, então, muitos parceiros.

Em 2012 veio o grande desafio: transformar a ONG em um modelo de instituição financeira apoiada pelo Banco Central. “Conseguimos há três meses”, comemora Alessandra.

Agora o Banco Pérola se adapta ao novo formato, estuda novos produtos financeiros complementares ao microcrédito, como desconto de recebíveis, alternativas que evitem que os clientes recorram a agiotas para obter dinheiro rápido e capital de giro.

Nessa nova fase do negócio, o braço de OSCIP do banco oferecerá aos clientes programas de formação e educação.

“Apoiamos empreendedores com sonhos, mas sabemos que eles representam apenas 1% dos jovens de comunidades carentes. Quem usa nosso crédito já tem uma autoestima diferenciada, e gostaríamos de inspirar outros a empreender, nem que seja em sua própria vida, numa carreira”, diz Alessandra.

“Meu combustível foi tentar fazer uma coisa diferente, comecei a trabalhar numa ONG aos 16 anos e vi que os projetos sempre esbarravam na sustentabilidade econômica. Eu não queria depender do poder público, de editais e me tornar refém dos parceiros”, conta. Hoje Alessandra comemora muitos investidores no Banco Pérola, que, em geral, solicitam taxas de retorno abaixo do mercado. A maior parte dos recursos, no entanto, vem dos próprios clientes: “Eles crescem. E pagam!”

Outro negócio social de sucesso é o portal de internet Saútil. “No Brasil, 75% da população não têm plano de saúde e depende do SUS; isso representa 140 milhões de pessoas. A maior parte delas não sabe onde fazer consultas, como tomar uma vacina, onde conseguir remédios gratuitos”, conta Edgar Morato, designer e especialista em comunicação que fundou o negócio em sociedade com o médico Fernando Fernandes, em 2011. “A gente apenas sabia que queria fazer uma empresa lucrativa que ajudasse as pessoas”, diz Morato. Decidiu-se, então, que essa forma de ajudar seria entendendo e traduzindo para a população como funcionam os serviços da rede pública de saúde no Brasil. Assim, o Saútil passou a oferecer orientação em questões relacionadas a consultas, exames, equipamentos, atendimentos de emergência, fornecimento de medicamentos e vacinas e localização de instituições de saúde pública.

Morato conta que, em 2011, o projeto mapeou a cidade de São Paulo. Identificados pela Artemísia, os empreendedores descobriram, então, o universo dos negócios sociais. “O conceito caiu como uma luva para o nosso projeto”, diz. Depois de integrar o programa da aceleradora de impacto e receber mentorias, a cobertura do conteúdo foi ampliada para todo o Brasil e entendeu-se que o negócio não deveria poluir a página de seu portal com anúncios, mas sim, gerar receita vendendo serviços para grandes corporações do setor.

“Além do buscador, fornecemos conteúdos de saúde segmentados: para o homem, a criança, a mulher, problemas respiratórios e do coração, por exemplo. E buscamos empresas que tenham a ver com alguma dessas áreas para nos patrocinar”, conta Morato.

Outro serviço é o chamado concierge, voltado para empresas que tenham funcionários sem plano de saúde. “Oferecemos orientação para apoiar o RH na solução de dúvidas de funcionários ligadas à saúde, por meio de um canal de telefone e também online”. No início, além do apoio da Artemísia, o fundo de investimento Vox Capital investiu R$ 55 mil para um capital inicial. Morato conta que não pensava em procurar por fundos de investimento. “Obviamente, com o crescimento rápido, sentimos a necessidade de ganhar escala, de atender às demandas com qualidade e, para isso, precisávamos de dinheiro. O Vox mostrou interesse em medir o impacto dos nossos benefícios, saber a opinião da população; não falaram apenas de indicadores financeiros, e isso chamou nossa atenção. Esse é o papel do investidor de impacto. Agora, estamos numa fase em que o Vox planeja entrar como sócia no projeto, em modelo de joint venture”, diz. Depois disso, o próximo passo para o Saútil será o lançamento de um market place no site, oferecendo acesso a produtos de baixo custo, como cadeiras de rodas, aparelhos de inalação e exames mais baratos. Não haverá venda, mas a facilidade para o usuário da compra por telefone ou internet.

Apoios de peso


Há muitos players apostando no desenvolvimento de negócios sociais. Além da Artemísia, outros desenvolvedores têm atuado no Brasil, como a  NESsT e a Fundação Avina, como grandes aliados na capacitação de talentos empreendedores, desde sua fase startup, nos dois primeiros anos de vida, por meio de educação, disseminação de conhecimento e aceleração de negócios.

No caso dos fundos de investimento especializados, além do Vox Capital, atuam no Brasil a Kaeté Investimentos, Pragma, First Impact Investing e Sitawi. “Quaisquer que sejam as características específicas dos negócios sociais, a realidade é que hoje, no mercado, as opções de financiamento são muito similares às dos negócios tradicionais. As linhas e os veículos de investimento coincidem quase em sua totalidade”, afirma Daniel Izzo, do Vox Capital.

Outras possíveis fontes de financiamento são os órgãos governamentais brasileiros (FINEP e BNDES, principalmente) ou por multilaterais internacionais (IFC e BID, por exemplo). Entretanto, muitos empreendedores ainda não buscam esse tipo de recurso por uma percepção de dificuldade no acesso. O certo é que algum recurso de filantropia parece indispensável no inicio dos negócios sociais. E os chamados investimentos de impacto surgem como oportunidade para oferecer escala. Os bons naturalmente irão crescer.

Integrando a cadeia de grandes empresas

Os negócios sociais surgem como um novo player : pequenas empresas conectadas a uma cadeia que se interliga com as grandes do mercado. Essas, por sua vez, se estiverem abertas para arriscar e repensar a cadeia de valor inteira, estarão no caminho de ajudar a desenhar uma nova economia.

Graziella Comini, do CEATS, afirma que há boas oportunidades de negócios para as grandes empresas com o setor dois e meio. Afinal, é possível escolher, por exemplo, uma gráfica com proposta social ou mesmo adquirir produtos de comunidades. Os departamentos de compras podem ficar mais atentos aos fornecedores sociais, estabelecer pregões socioambientais, assim como o governo, que representa um grande comprador, além de regulador dessas ações.

Já as empresas sociais, como qualquer outra sob as regras do mercado, precisam elaborar seus modelos de negócios, dedicando-se a conhecer seu público, oportunidades e riscos. Um dos maiores perigos ao ingressar na cadeia de fornecimento de grandes empresas é o descompasso de ritmos nas negociações.

Grandes corporações trabalham com volumes muito grandes, numa velocidade que as empresas sociais podem não conseguir atender, como explica Roberto Palmieri, gerente de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora).

Um problema clássico é o do crescimento da demanda. “No nosso caso, que trabalhamos com insumos da natureza em sistema de manejo florestal, vemos muitas empresas, por exemplo, de cosméticos, solicitando de repente um volume muito grande de um determinado ativo para dar conta da produção. Tentar atendê-las pode representar um risco para as empresas pequenas, impactando até mesmo o seu funcionamento social, ou seja, o core business, e comprometer a qualidade das relações”, explica. Outra armadilha: muitos negócios passam a trabalhar exclusivamente para apenas um cliente grande por não ter fôlego para aumentar sua equipe e diversificar compradores.

“Quando se fala em negócios sociais, não são apenas eles que precisam se adequar ao mercado e ao ritmo das grandes corporações. As grandes empresas precisam se abrir para entender a dinâmica, capacidade e limitações, para que seus contratos reflitam esse novo tipo de negócio, preocupado com as relações sociais”, diz Palmieri. No caso das grandes, isso implica muitas vezes alterar suas políticas, a forma como fazem solicitações, pedidos e o tempo de entrega.

Quando se fala de produtos florestais e agrícolas, principalmente, deve-se colocar o ritmo da natureza em primeiro lugar, não o do mercado. Um bom exemplo é o da copaíba, árvore que produz um óleo muito procurado. Palmieri conta que o Imaflora precisou intermediar a relação entre os produtores e uma empresa, pois um aumento da demanda poderia desestruturar o grupo de trabalhadores e causaria uma pressão muito grande nos recursos naturais. Uma evolução na relação entre as multinacionais e as ONGs ou negócios sociais mostra que ambos podem aprender mutuamente, num processo de cocriação que envolve uma nova perspectiva: corporações com uma visão mais social e ONGs com um conhecimento mais gerencial.

Negócios sociais e a nova economia

Em artigo chamado Visão 2050: um Mundo Livre da Pobreza, o professor Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1996, escreveu acreditar que os negócios com foco social sejam “um passo na direção de uma nova ordem econômica e social global”. Eventualmente, uma ordem num mundo “livre da pobreza, algo que só poderá ser visto em museus, em 2050”. Ao iniciar uma revolução mundial nos financiamentos e conceder crédito para os pobres por meio do projeto de microcrédito iniciado em 1976, em Bangladesh, que evoluiu para o Banco Grameen, em 1983, Yunus colocou holofotes sobre uma parcela da sociedade excluída do sistema capitalista, ao menos dois terços da população mundial considerada como não merecedora de crédito. “Todo ser humano nasce perfeitamente capacitado, não apenas para cuidar de si mesmo mas também de contribuir para o bem-estar do mundo. O problema é que eles morrem com seus dons inexplorados e o mundo perde suas contribuições”, afirma o banqueiro dos pobres.

No sistema capitalista, as pessoas e suas humanidades localizam-se na periferia, e não no centro dos negócios. No entanto, já 250 anos atrás, o fundador da economia liberal clássica escrevia: “O que melhora as condições da maior parte não deve ser nunca considerado um inconveniente para o todo. Nenhuma sociedade poderia florescer e ser feliz onde a maior parte dos indivíduos é pobre e miserável”, afirmou Adam Smith em A Riqueza das Nações (1776).

Yunus e uma linha de estudiosos de Smith afirmam que, já nessa época, o pensador havia elaborado uma teoria econômica que vislumbrava um capitalismo muito mais social do que o que conhecemos hoje. Defendem que o conceito de “mão invisível do mercado”, cunhado em sua obra, não poderia ser entendido sem um outro livro de Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais, quase ignorada pelos seguidores do capitalismo, em que ele fala sobre a dimensão moral da consciência social do homem, afirmando que ele é movido pela consciência, simpatia e desejo de lucro pessoal. Assim, merece um entendimento mais amplo seu célebre conceito fundamental para a doutrina do liberalismo: “Ao buscar seu próprio interesse, o indivíduo frequentemente promove o interesse da sociedade de maneira mais eficiente do que quando realmente tem a intenção de promovê-?lo.”

Yunus declarou diversas vezes que a natureza humana é multifacetada, multidimensional: seu comportamento tem uma dimensão egoísta, que visa ao ganho próprio, lucro pessoal e exclusivo, outra, altruísta, solidária, capaz de encontrar satisfação na satisfação alheia. Entretanto, a teoria econômica convencional foi desenvolvida de forma unidimensional, deixando espaços muito reduzidos para essa parcela mais altruísta da humanidade. Para Yunus, “de certa forma, escolhemos não levar em conta metade da mensagem de Smith”. Nesse sentido, o desenvolvimento de negócios sociais seria uma correção necessária à rota do capitalismo.

Erich Fromm também dedicou-se a estudar as tendências presentes no ser humano, uma “ter – possuir –, que adquire sua força, em última análise, no fator biológico do desejo de sobrevivência; a outra, ser – participar, dar, sacrificar-se –, que obtém sua força das condições específicas da existência humana e da necessidade de superar o isolamento pela identificação com os outros”. Para o filósofo, o que determina a valorização de um aspecto ou outro é a pressão social. Uma maior abertura social para um caminho do meio, entre o ter e o ser, parece estar em discussão.

“Na minha opinião, a razão de nada deveria ser apenas fazer mais dinheiro. Isso cria um abismo de valores, a crise que vivemos hoje. O dinheiro deve ser trabalhado no lugar dele: como ferramenta para grandes realizações e como consequência da realização de coisas bem feitas. Estamos falando em gerar prosperidade, e o lucro permite isso”, diz Daniel Izzo.

Ao que tudo indica, para uma nova geração de empreendedores, os caminhos híbridos parecem fazer muito mais sentido. Insatisfeitos com as limitações dos modelos tradicionais, que separam o “fazer o bem” do “ganhar dinheiro”, querem progredir na carreira e criar família beneficiando a sociedade. “Eu formo alunos e vejo que o modelo das ONGs nunca gerou grande atrativo de carreira para a maioria, sendo consideradas atividades periféricas. Quando se fala em negócios sociais, os jovens pensam nessa nova perspectiva”, diz Graziella Comini, do CEATS. Para ela, esse seria um importante potencial inovador dos negócios sociais. Por isso, vale analisar as empresas que já nascem sob uma nova concepção, naturalmente híbridas, rompendo, assim, com as tradicionais fronteiras entre setor social e privado.

Para o professor da Fundação Dom Cabral, Cláudio Boechat, outro aspecto importante é salientar que qualquer empresa é inclusiva, em menor ou maior grau. “Não estimulamos nossos alunos a pensar em ‘caixas’ de social e não social; preferimos falar sobre inclusividade das empresas, e, assim, não conferirmos autorização para que as empresas grandes não sejam sociais.” Segundo ele, o principal argumento é que o impacto das grandes empresas do mercado, tornando-se mais sociais, seria muito maior do que o de tantas empresas sociais sendo criadas, já que as grandes detêm recursos e escala.

Roberto Palmieri observa mudanças importantes em curso: as empresas costumavam negociar com pequenos fabricantes de produtos florestais, por exemplo, sem se relacionar com eles, já que usavam atravessadores para seguir a lógica do mercado. Dessa forma, tudo tinha de se adaptar ao ritmo das grandes corporações, não havendo preocupação em saber sobre ciclos e ritmos da ecologia. “Com mudanças no sentido da sustentabilidade, os atravessadores diminuem e as grandes empresas passam a ter contato com os pequenos negócios sociais e suas realidades”, diz.

O gerente do Imaflora aponta mudanças na forma de lidar com os fornecedores em empresas grandes, como a suíça Firmenich, que fornece ativos da biodiversidade para empresas cosméticas, como a Natura. “Elas têm uma forma diferente de comprar, não observam apenas questões de quantidade e qualidade, mas se no processo estão sendo respeitadas as questões sociais e do meio ambiente. Outro bom exemplo vem da Mercur, que trabalha com borracha nativa de produtores das reservas extrativistas na Terra do Meio, no Pará, que afirma: ‘Se não der para fazer de uma forma sustentável, respeitando o tempo das comunidades e das seringueiras, não interessa mais, é um principio inegociável’”, completa. “Gosto de levá-los para visitar seus fornecedores, para falar com as pessoas, conhecer a vida delas, sua realidade, comer o que comem, dormir como dormem”, diz. Isso, definitivamente, não é filantropia, mas um novo tipo de negócio.

Nessas novas relações, empresas sociais devem pensar e agir de forma diferente, e a cocriação torna-se extremamente importante como estratégia para que modelos de negócios tradicionais não sejam replicados. Na teoria de Fromm, o lado mais altruísta, social e ecológico do homem teria sido reprimido historicamente, desde a Revolução Industrial, porque a sociedade baseou-se na aquisitividade, no lucro por si só, orientando o caráter social no sentido do ter. Para ele, não houve resistência porque humanos querem pertencer, não ser marginalizados, adaptando-se à maioria.

Com uma busca crescente da sociedade por sentido e felicidade, pelo equilíbrio entre o ser e ter, novos ventos sopram. Seriam eles suficientes para incentivar a construção de uma nova economia capitalista, nos moldes dos melhores sonhos de Smith e Yunus?

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