Especial – Investimento social que transforma comunidades (parte 1)

Especial – Investimento social que transforma comunidades (parte 1)

Há pouco mais de dez anos, boa parte das empresas brasileiras acreditava que praticar a filantropia, desenvolvendo projetos sociais voltados para a comunidade, era o suficiente para ser considerada socialmente responsável. Com o esforço de disseminação do conceito, a RSE passou a ser reconhecida como uma noção mais ampla, não restrita à ação social externa, mas focada em um novo modo de conduzir negócios que se define por metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da sociedade e pela relação ética e transparente com todos os públicos com os quais uma empresa se relaciona na cadeia de negócios– acionistas, empregados, fornecedores, consumidores, governos, meio ambiente e comunidade. Embora, investir em comunidades não possa ser considerado sinônimo de RSE, é certo que consiste em um dos seus vetores mais valorizados.
Na última década, como resultado de um mesmo processo de mudança de paradigmas, até a filantropia praticada pelas empresas em outros tempos cedeu seu espaço para um novo conceito, o de investimento social privado. As diferenças são importantes. Caracterizava a filantropia empresarial um certo desprendimento na doação de recursos sem regularidade e constância, diagnóstico de necessidades, avaliação de impactos, compromisso com resultados de transformação na qualidade de vida das pessoas. O investimento social privado incorpora esses novos elementos na medida em que institucionaliza e torna mais profissional a ação social dirigida á comunidade, incorporando ferramentas típicas do universo empresarial como planejamento, definição de metas e objetivos e monitoramento de resultados.
Um bom projeto social de empresa já não pode mais ser – como no paradigma filantrópico – apenas um conjunto de boas intenções. Para que, de fato, transforme a vida de uma comunidade ele precisa reunir um conjunto de fatores. “Alianças com governos e ONGs, uma perspectiva de longo prazo, de no mínimo três anos, planejamento e avaliação, trabalhar com a comunidade e não para a comunidade, estabelecer confiança e articular todos os atores sociais são pontos fundamentais”, afirma Fernando Rossetti, coordenador executivo do GIFE (Grupo de Instituições, Fundações e Empresas). Em sua opinião, além de um foco claro e de uma compreensão exata do que a motiva na realização daquele projeto, a empresa deve fortalecer o seu repertório.
“Todas as empresas levam um tempo para aprender a lidar com questões sociais. O conhecimento é adquirido aos poucos, e tê-lo faz toda a diferença. De qualquer forma, toda empresa erra nos primeiros anos. É normal. É praticamente uma regra”, diz. Tão importante quanto dispor de recursos financeiro ou know-how de gestão é o envolvimento do primeiro escalão da empresa. Para Rossetti, quando presidente e diretores participam diretamente as chances de o projeto obter sucesso crescem porque a iniciativa acaba se inserindo na cultura da organização e sendo apropriada, com maior legitimidade, por todos os que trabalham nela.
Diretora do departamento de educação executiva da Universidade de Harvard, especialista em investimento social privado, Cristine W. Letts concorda com Rossetti. No último mês de outubro, ela esteve no Brasil para apresentar estudo de caso que elaborou sobre a Fundação Bradesco e que considera “um exemplo de investimento, coerente e bem-sucedido, de recursos privados para uma causa de grande interesse público, a da educação”. O estudo será trabalhado com alunos da famosa escola de negócios norte-americana. “Antes de iniciar uma ação de investimento social, a empresa deve considerar algumas questões práticas.
Entre as quais, destaco uma análise efetiva de suas motivações, o quanto e por quanto tempo está disposta a se comprometer, que tipo de suporte interno tem para tocar a iniciativa, em termos de competência e autoridade técnica e que lugar vai ocupar o empreendimento na corporação”, ensina a professora. Para Cristine, há três bons critérios para avaliar os impactos de um projeto social na comunidade. “São eles a integração com as políticas públicas que tratam do problema a ser enfrentado, a capacidade de gerar solidariedade voluntária, envolvendo os diferentes atores de uma comunidade e as possibilidades de parceria e cooperação intersetorial”, afirma a especialista.
Na avaliação de Christine, há muitos e bons exemplos de projetos de investimento social privado no Brasil, alguns dos quais já com “história de transformação de comunidades, baseada em dados e números de impacto” para contar. Depois de ouvir um conjunto de especialistas da área, Idéia Socioambiental escolheu sete boas experiências que podem servir de inspiração para empresas que já tem iniciativas sociais ou que estão pensando em desenvolver uma. Acompanhe a seguir.
Jarí: modelo de desenvolvimento sustentável
O empresário paulista Sergio Amoroso, presidente do Grupo Orsa de papel e celulose, sempre gostou de desafios. Conhecido por sua capacidade empreendedora – duas das unidades da Orsa Papel e Celulose, falidas quando compradas, são hoje modelo de produtividade – ele assumiu, no ano 2000, o que qualquer empresário de bom senso consideraria uma encrenca: arrematou o fracassado Projeto Jarí, criado em 1967 pelo magnata americano Daniel Ludwig e decidiu provar que, sim, era possível torná-lo viável.
Criado originalmente para transformar a região às margens do Rio Jari em um pólo agroindustrial de celulose, o projeto, durante três décadas, consumiu fortunas, devastou a floresta e deixou em situação precária milhares de moradores nos arredores do empreendimento. Amoroso queria não apenas reverter essa situação como, ainda, fazer do Projeto Jari uma referência mundial de exploração sustentável, combinando a geração de riqueza com a conservação da floresta. Passados sete anos, a encrenca transformou-se no que ele prórpio define como um “laboratório da sustentabilidade no meio da Amazônia, onde o conceito dos 3 Ps (people, planet and profit) ganhou cada vez mais força na estratégia corporativa.”
Para o Grupo Orsa, segundo Amoroso, o “desenvolvimento dos negócios deve ser um fator de transformação da sociedade, e isso é uma realidade no Jari – por meio de ações economicamente viáveis, socialmente justas e ambientalmente corretas”,
Entre essas ações, ele destaca o Projeto de Manejo Florestal Sustentável, desenvolvido na sua reserva legal de mais de 1,7 milhão de hectares entre os estados do Pará e do Amapá, e que ganhou o reconhecimento das maiores organizações ambientais do mundo, como o Greenpeace e o WWF. Do total da reserva, cerca de 430 mil hectares foram certificados pelo Forest Stewardship Council (Conselho de Manejo Florestal). O selo atesta que o produto final resulta de procedimentos ambientalmente responsáveis.
Na área social, são investidos R$ 4,5 milhões por ano em mais de 20 projetos sociais que beneficiam 139 mil pessoas, de 98 comunidades da região. As principais protagonistas das mudanças implantadas no Vale do Jarí são as mulheres. Antes, apenas donas-de-casa, hoje são praticamente as responsáveis pelo sustento da família. Um diagnóstico feito pela Fundação Orsa mostrou que, apesar do pouco conhecimento, as mulheres tinham um papel importante na família e nas comunidades. Instrumentalizadas, poderiam colaborar mais efetivamente com o desenvolvimento local. Com base nessa constatação foi criado o Cem – Centro de Excelência da Mulher, voltado para a geração de renda.
Os profissionais do Jari ajudam as mulheres a descobrir suas vocações e habilidades. Depois, montam oficinas em que elas aprendem uma profissão. “Se não temos na Fundação algum curso específico, buscamos consultoria externa, mas não deixamos de fornecer a capacitação de que necessitam”, diz Vinícius Tibúrcio, coordenador da Fundação Orsa no Jari.
Um dos cursos ministrados é o de costureira, ligado ao projeto Agulhas Versáteis. No início, menos de 10% das mulheres da comunidade sabiam costurar. Atualmente, 41 costureiras que se revezam em dois turnos para confeccionar uniformes de cinco empresas prestadoras de serviços da Jari Celulose. As roupas, antes compradas em outros estados, agora garantem renda às novas costureiras e contribuem para o crescimento regional. Cada uma recebe o equivalente a um salário mínimo. A perspectiva é que, até o final de 2008, este valor chegue a R$ 570 por mês.
A vida melhorou também para as 20 integrantes da Amarte – Associação das Mulheres Artesãs do Vale do Jari, que trabalham basicamente na produção de bijuterias. Depois de participar do curso de design, elas criaram produtos únicos, feitos com sementes e fibras da floresta, que lhes rende entre R$ 300 e R$ 400 por mês. A expectativa é que a renda dobre nos próximos 12 meses. “Essas mulheres, que nunca pensaram em participar de projetos dessa natureza, hoje se sentem felizes e valorizadas.”, orgulha-se Tibúrcio.
Os jovens também são beneficiados pelos projetos do Jarí. Garantem profissão e renda no COPP – Centro de Oportunidades e Potencialidades Profissionalizantes, no qual o principal projeto é a Escola da Madeira. Nela, aprendem com profissionais do Senai a fazer móveis, caixinhas de todos os tipos e tamanhos e brinquedos educativos com resíduos de madeira certificada para marcenaria doados pela Orsa Florestal. Associados à Coopnharin – Cooperativa de Artefatos Naturais do Rio das Castanhas, muitos desses jovens vendem seus produtos, principalmente móveis, ao mercado local, obtendo uma renda mensal de até R$ 400. A escola tem planos para montar uma linha de piso para jardim para atender ao mercado externo e doméstico. Quando for efetivada, deverá ampliar para R$ 600 a renda mensal de cada associado”, informa Tibúrcio. Além da profissão, os alunos aprendem ainda noções de ética, cidadania, preservação ambiental, além de conceitos de negócios, qualidade, logística e design.
Uma revolução de conceitos no Baixo Sul da Bahia
A região do Baixo Sul da Bahia, que abrange 11 municípios e uma população de 260 mil pessoas, é uma das mais pobres do Estado. A renda média mensal dos habitantes – dos quais mais de 60% vive em área rural –, não ultrapassa os R$ 150,00 e 30% da população sequer tem carteira de identidade. Porém, desde 2003, a vida dos habitantes desse pedaço baiano repleto de belezas naturais, onde se encontra a segunda maior área remanescente de Mata Atlântica do país, está mudando para melhor.
Graças ao Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentável – DIS-Baixo Sul – criado e implantado pela Fundação Odebrecht, as cadeias produtivas locais como aqüicultura, mandioca, piaçava e palmito pupunha foram fortalecidas, triplicando a renda de mais de mil famílias. O aumento na remuneração provocou um efeito cascata, possibilitando melhorias na alimentação, moradia e o acesso à educação.
O que fez o DIS-Baixo Sul foi criar oportunidades para um crescimento econômico sustentável, integrado de forma harmoniosa à melhoria de vida da população e à preservação do meio ambiente. Para tanto, tomou como base o conceito dos “quatro capitais” – social, produtivo, humano e ambiental – que prevê o desenvolvimento simultâneo e complementar em quatro dimensões de uma comunidade ou região.
Na linha do capital social, o DIS-Baixo Sul começou por resgatar os valores de cidadania, permitindo o acesso à justiça e aos direitos básicos. Um mapeamento da região feito pelo programa revelou que em vários municípios da região não existiam conselhos municipais de Direito, Educação ou tutelares. Iniciou-se, então, uma campanha de capacitação de conselheiros e líderes comunitários para que reivindicassem a implantação desses órgãos e a sociedade tivesse voz ativa em todos eles. A pesquisa também detectou que grande parte dos moradores não possuía carteira de identidade. Com o apoio do governo, o programa passou a fornecer documentação básica gratuita. Até agora, 170 mil cidadãos já foram atendidos.
No capital produtivo, o programa da Fundação Odebrecht procurou fortalecer as cadeias produtivas locais, promovendo e gerando trabalho e renda. A estratégia foi organizar a produção local – caracterizada pela agricultura familiar e pesca artesanal – em cooperativas, aumentando a produtividade e o lucro dos trabalhadores.
Na aqüicultura, por exemplo, as 125 famílias que se dedicam à criação de tilápias estuárias e ostras, viram sua renda saltar de R$ 220,00 para R$ 600,00 por mês. O programa incentivou a formação da Coopemar – Cooperativa Mista de Marisqueiros, Pescadores e Aqüicultores que, em parceria com a iniciativa privada e governos, elevou a produção inicial de quatro toneladas para 15 toneladas de peixe por ano e passou a atender mercado internacional. Da produção mensal, duas toneladas são destinadas à rede francesa de supermercados Aucham, que reverte R$ 9 mil para a cooperativa.

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