Especial – Ética nos negócios: o embate entre duas morais, a altruísta e a egoísta (parte 1)

Especial – Ética nos negócios: o embate entre duas morais, a altruísta e a egoísta (parte 1)

Em um momento delicado da política brasileira, quando a retórica dos valores se choca com a prática, dois representantes de entidades empresariais e um professor da USP discutem a ética no mundo das empresas e a influência deste tema no debate sobre

A polêmica começa logo na definição do conceito. Quando se quer se discutir valores, modelos e critérios para ações voltadas ao bem coletivo, está se falando de ética ou moral? Ética é o mesmo que moral? Se não são sinônimos, os dois termos possuem alguma relação? Tratada há 2.500 anos como tema nobre no campo da filosofia, a ética ganhou o status de ciência há pouco mais de um século. É a ciência que estuda a moral. O que ocorre no Brasil e em muitos outros países é que o conceito científico de ética confunde-se, no imaginário popular, com seu objeto de estudo. E, desse modo, ela serve como palavra fácil para encorpar desde seminários acadêmicos até conversas de botequim sobre atos desonestos, mentiras e desvios comportamentais de políticos, empresários e dirigentes de futebol. Segundo o sociólogo e professor de pós-graduação da Faculdade de Economia e Administração da USP, Robert Henry Srour, a prevalência do uso da palavra ética sobre moral se deve a uma antipatia associada à segunda, graças a três fatores.
O primeiro remonta ao período da ditadura militar quando os generais implantaram nas escolas a disciplina obrigatória de Moral e Cívica, recebida muito a contragosto por estudantes e pais. O segundo está relacionado às conotações do termo, ao seu tom “punitivo” e ao fato de que vem sempre cercado de intolerância e dogmatismo na medida em que parece separar o mundo entre os que são puros e os do mal. O terceiro, mais grave, refere-se ao que Srour chama de duplicidade moral, isto é, a idéia de que um indivíduo ou uma organização podem se deixar guiar por dois tipos de moral, muitas vezes conflitantes, dependendo da situação e das circunstâncias em que estão envolvidos.
Não é objetivo desta matéria aprofundar o debate sobre os tênues limites conceituais de moral e ética. Ao entrevistar três especialistas, de diferentes formações,Idéiasocial pretende mostrar a relação entre este último fator mencionado por Srour, a duplicidade moral, e a construção dos padrões de conduta de uma empresa, ressaltando a influência do movimento de responsabilidade social nesse processo e como novos valores éticos têm sido aplicados na prática diária das corporações brasileiras.
A moral da integridade versus a moral do oportunismo, duas forças contrárias em permanente tensão

Na avaliação do professor da FEA-USP, a duplicidade moral, arraigada especialmente à cultura da América Latina, é uma prática comum entre empresas, mesmo nas que se apresentam como éticas e socialmente responsáveis. Esta prática fundamenta-se na tensão entre dois tipos de moral antagônicas: a da integridade e a do oportunismo. “Nos países latino-americanos divulga-se uma moral pública e parcial, espelhada na doutrina católica. Ela nos guia a ser gente do bem, pessoa de caráter, como se diz na linguagem popular. Faz a apologia da virtude e da pureza. É o que eu chamo de moral da integridade”, explica.
Para Srour, por trás do discurso bom-mocista, no entanto, esconde-se um outro, mais egoísta, aferrado á chamada “moral do oportunismo.” Consiste em um sistema normativo oficioso, que prega a esperteza e a malandragem como valores aceitáveis em determinadas situações. “Da porta para fora, o discurso prevalente é o que se escora na moral altruísta. Na intimidade, aceita-se, sem grande culpa, atitudes como passar a perna no governo, burlar fiscalização ou piratear produtos. Esta dubiedade cria um imbróglio moral, uma hipocrisia social disseminada, extremamente grave e muito representativa do momento que estamos vivendo hoje no País”, analisa o consultor.
Na avaliação de Emerson Kapaz, presidente-executivo do Etco – Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, uma empresa pode até manter, a portas fechadas, a orientação de uma moral oportunista. Mas ela corre sérios riscos. E eles são crescentes. Os limites éticos de sua atuação serão cada vez mais controlados pelo ambiente externo. A cada dia a sociedade –enfatiza — tem demonstrado menos tolerância em relação a determinados comportamentos e transgressões de regras, adotando reações que vão desde o boicote silencioso a produtos e serviços até outras formas de manifestação pública de protesto. Kapaz defende o conceito de ética como uma construção coletiva, a partir do movimento da sociedade como um todo, cuja origem se dá na reunião e no ajuste dos valores de seus indivíduos. É este ajuste –acredita — que confere ao conceito uma certa dose necessária de flexibilidade. “Vejo a ética coletiva como um bambu. É flexível, mas volta sempre para a posição ereta inicial. Se você não dispõe de parâmetros definindo até onde pode flexibilizar, o bambu quebra, como observamos no momento atual do país. O perigo da inércia é justamente a ampliação exagerada dos limites dessa flexibilidade”, afirma o empresário, para quem há menos indignação das pessoas com o que está havendo no cenário político do que seria desejável.
Na opinião de Kapaz, a apatia em relação às transgressões faz mal á ética coletiva. Quando os limites são postos para escanteio, e o desrespeito a eles passa a ser visto como “normal”, a sociedade transpõe a fronteira entre o aceitável e o inaceitável, até mesmo sem perceber. “Achar corriqueiro o financiamento de campanha eleitoral com caixa dois, sob a justificativa de que este delito faz parte da nossa cultura, é um sinal de rompimento do parâmetro de flexibilidade”, ressalta o empresário.
Os limites de flexibilidade do bambu “ético”

Para evitar o que Kapaz chama de “quebra do bambu” ético, o professor da FEA-USP prega tolerância zero na ruptura de limites comuns que devem ser estabelecidos com clareza e bom senso. Segundo ele, a condescendência “avacalha o esquema”. Isto serve para a empresa que burla leis, o político que corrompe ou o indivíduo que sonega impostos. “O que vale para um têm de valer para todo mundo. Por este motivo, mecanismos de auditoria e de controle são fundamentais em qualquer atividade empresarial. É assim que se muda radicalmente a forma de perceber as coisas”, argumenta. Acomodar-se diante da duplicidade moral ou deixar de refletir sobre ela traz –segundo Kapaz — enormes riscos para a sociedade. Na defesa do seu ponto de vista, usa o conhecido exemplo da consulta médica sem recibo: embora seja uma prática ilegal, as pessoas acostumaram-se tanto a ela que, mesmo as que, por princípio, são contra a sonegação de impostos, acabam participando sem perceber a sua parcela de responsabilidade.
Alberto Perazzo, presidente da Fides – Fundação Instituto de Desenvolvimento Empresarial e Social, faz coro com os dois outros especialistas. Em sua opinião, a imposição de limites claros, e a atenção rigorosa a eles, determinam o sucesso de um sistema de ética, qualquer que seja ele. Mas, ao contrário do que sugere Kapaz, ele acredita que o movimento mais forte nesse processo emana de dentro e não de fora da empresa, sendo resultante de decisão consentida de seus dirigentes, produto de uma profunda e permanente reflexão ética, muito mais do que de pressão da sociedade. “Se as decisões de natureza ética não são tomadas com base em muita reflexão interna, como conseqüência de clara convicção, a empresa naturalmente faz aquilo que mais lhe convém, agindo conforme os seus mais imediatos interesses, e adotando a velha e discutível máxima de que ‘o fim justifica os meios’”, esclarece.
Quando toma atitudes automaticamente, sem pensar no prejuízo de outros, movido apenas pela crença comum de que todo mundo age assim, um empresário jamais constrói um padrão ético de atuação. E uma estrutura consistente de valores é a base, por exemplo, para que ele não transgrida regras e enfrente os seus dilemas com a consciência de seu papel e de suas responsabilidades. “Muitos pequenos empresários já estiveram na situação de escolher entre o pagamento dos salários ou dos impostos. Qualquer que seja a escolha, ele sabe que vai burlar algumas normas. Mas a questão principal é definir se está fazendo isso porque todo mundo faz ou porque naquele momento não consegue arcar com as duas despesas. Isso faz toda a diferença e revela os valores desse empresário”, defende o executivo da Fides.
O mesmo raciocínio se aplica – segundoPerazzo – a outras duas situações bastante comuns no meio empresarial: o pagamento de propinas e a exigência de favores na hora de fechar um negócio. Flexibilizar demais os valores éticos, aceitando a idéia de que sem aderir a comportamentos como estes, não se obtém sucesso empresarial, prejudica, a rigor, a construção de um modelo de sociedade melhor. Todos, portanto, perdem. Até os que, em um primeiro momento, pensar ganhar algo. “Antes de entrar em um esquema desses é fundamental que o empresário questione em que mundo quer viver, se é essa a sociedade que ele deseja ou é a que ele tem de ajudar a mudar”, ressalta Perazzo.
A interferência da responsabilidade nos referenciais éticos da empresa

Segundo o professor da FEA-USP, presas a uma visão míope da realidade, muitas empresas ainda não perceberam que a duplicidade moral é uma armadilha perigosa. Para suas reputações e para a saúde do próprio negócio. Há sinais eloquentes de que a sociedade não está mais disposta a conviver com empresas eticamente incoerentes. Enron, WorldCom e Parmalat, ou ainda a Nike, para ficar em apenas quatro exemplos, viram seus patrimônios esfacelarem quando práticas negociais menos nobres tornaram-se escândalo público. “Não importa que diferentes feições ou graduações tenha. A moral do oportunismo simplesmente não deveria existir mais “, pontua Srour.
Na opinião dos três especialistas entrevistados por Idéiasocial, a responsabilidade social empresarial consiste em instrumento importante para fazer prevalecer a ética altruísta sobre a egoísta. Sua crescente valorização, como conceito, abre espaço para uma revisão de valores, de discursos e de práticas em cujo horizonte os mais crentes esperam ver a extinção da moral oportunista. “Em um primeiro momento, ela afeta a lógica do sistema capitalista de maximizar o lucro. Isso é saudável. Admitir a idéia de que é possível converter parte dos lucros em ganhos sociais, a partir de uma reflexão ética, mesmo que resultado de pressão da sociedade, faz bem para a empresa. Ao adotar novas práticas, ela desenvolve melhorias na sua cadeia produtiva e de relacionamentos”, diz Srour. Para ele, o empresariado brasileiro já percebeu que não está jogando dinheiro fora quando trata de responsabilidade social. Sabe que ela gera retorno. Mas, em sua opinião, o discurso ainda é mais profuso do que a ação. “Falta ativismo para colocá-la em prática”, arrisca.
Na opinião de Perazzo, a responsabilidade social ilumina um novo caminho de atuação na medida em que interfere nos referenciais éticos da empresa. Nem todas as empresas têm valores claros e conseguem mensurar tudo que deve ser levado em conta – possíveis efeitos e desdobramentos diretos ou indiretos – na hora de tomar suas decisões de negócio. Não sabem avaliar que determinadas atitudes podem desencadear dinâmicas complexas e, em alguma medida, prejudiciais a alguém, a algum grupo de pessoas ou á sociedade. “Ao trabalhar sob a óptica da responsabilidade social, a empresa passa a levar em conta cada pequena coisa que pode acontecer com ela mesma ou com quem pode ser atingido por qualquer uma de suas decisões”, explica. O executivo da Fides descreve a responsabilidade social como algo que permeia cada minuto da vida de uma empresa.”Não se restringe à oportunidade de um balanço social, a uma campanha publicitária ou à obtenção de um selo. É a consciência do que há além da responsabilidade econômica e do cumprimento rigoroso da legislação vigente. É um padrão máximo de conduta que pauta as ações da empresa seja em que contexto for”, diz.
Kapaz concorda que a responsabilidade social resgata valores éticos que se fragilizaram com o tempo e estabelece novos princípios para empresas. Como conseqüência de sua expansão no mundo dos negócios, ele prevê a gradativa construção de um capitalismo mais justo, com menor concentração de renda. Incomoda-o, sobretudo, o fato de que 50% da renda mundial está nas mãos de apenas 2% da população, dinheiro demais para um grupo muito pequeno. “Esse nível de concentração de dinheiro”, afirma o empresário, “relaciona a sobrevivência do capitalismo à acumulação de riquezas e não à distribuição mais justa de renda”, afirma.
No cabo de guerra: de um lado a nova responsabilidade social, do outro a velha cultura da irresponsabilidade social

A crise ética que marca a vida política do País, caracterizada pela perigosa confluência de interesses públicos e privados, preocupa mas não desanima os entrevistados de Idéiasocial. Para eles, a lição que vai ficar do imbróglio é a de que vale a pena manter-se fiel a valores morais firmes haja o que houver. Princípios éticos claros, compromissos sociais elevados e respeito às regras do bem coletivo passarão a ser cada mais valorizados como traços distintivos do caráter de indivíduos, partidos políticos, organizações e empresas. Para Kapaz, muitas corporações já perceberam esta dinâmica. “Se a empresa adotar comportamentos socialmente responsáveis, se souber comunicá-lo adequadamente e se conseguir fixar uma imagem ética junto ao consumidor, ela poderá ter mais valores agregados a seus produtos do que imagina”, acredita o presidente do Etco, ressaltando o fato de que, não por acaso, as empresas mais procuradas para se trabalhar são as vistas como mais éticas e mais preocupadas com a sociedade.
Como na clássica brincadeira do cabo de guerra, em uma ponta da corda está o novo movimento de responsabilidade social; na outra, uma velha e renitente cultura de irresponsabilidade social, cuja origem remonta ao período de colonização, marcada pela preservação de interesses privados mesquinhos em detrimento dos interesses públicos mais amplos. Até os que possuem valores morais mais rígidos reconhecem que o ambiente não motiva o empresário brasileiro a manter um comportamento ético. Quem não sai da linha é porque tem pulso e convicção firmes para encarar o dilema de sobreviver em um mundo de desvios, irregularidades e espertalhões, sem flexibilizar o bambu ético a ponto de quebrá-lo. Para Kapaz, isso não só é possível como altamente desejável. E a responsabilidade social constitui uma espécie de manual de instruções. Não a “da porta para fora”, que esconde sujeira debaixo do tapete e serve apenas de texto para bonitos relatórios sociais. Mas a “da porta para dentro”, que se estrutura na coerência entre o que se diz e o que se faz, entre o que se pensa e como se age, entre o que se acredita e o que se realiza. “Ética e ações sociais externas, voltadas para as comunidades, podem até andar separadas em uma empresa”, ressalta Kapaz. “Mas essa distância não demorará muito a aparecer. E quando isso ocorrer, a responsabilidade social perderá o sentido, transformando-se em um mero apelo de marketing. Ao comunicar atividades que refletem um comportamento legítimo da empresa, a divulgação é positiva. Do contrário, fere o conceito básico da ética por inteiro”, crê.
Para o professor da FEA-USP, responsabilidade social não é, como muitos acreditam, uma postura de generosidade das empresas. Mas uma espécie de investimento. Tanto melhor será o seu resultado quanto potencialmente mais pessoas se beneficiarem dos seus dividendos. “A empresa só atinge seus interesses se coloca no mercado um produto que tenha qualidade e seja acessível para o público ao qual se destina. O que se discute hoje, com a responsabilidade social, é que parte dos lucros seja transformada em ganhos sociais. Isso não é benemerência, mas investimento. É um jogo de altruísmo imparcial em que todo mundo ganha. Só que muita gente ainda não percebeu isso”, diz Srour.
Na visão do consultor, muitas empresas ainda encaram a responsabilidade social como um fardo extra, imposto pela sociedade do século 21, um custo a ser absorvido e não uma oportunidade de reformulação do negócio com base em uma ética altruísta. Nem todas a vêem como um jogo de ganha-ganha. Saber jogá-lo vai depender da estratégia do time. Para ilustrar sua opinião, Srour descreve a experiência recente de um laboratório farmacêutico internacional que criou um medicamento para combater o tracoma (doença localizada nos olhos). Além de permitir que a fórmula fosse de domínio público, doou uma grande quantidade de medicamentos a países pobres. Esta atitude mexeu no esquema internacional de distribuição de remédios, resultando, de imediato, em ganhos substanciais à corporação. Eis como tudo aconteceu: ao se associar a organismos técnicos internacionais o laboratório capacitou médicos para diagnosticar a doença e ministrar o novo medicamento. Em parceria com ongs, criou uma grande infra-estrutura de distribuição. No âmbito individual, os pacientes de tracoma foram beneficiados com o acesso ao remédio. No coletivo, sociedade e governos ganharam com a diminuição do número de doentes e dos gastos com a saúde pública. E o laboratório, por sua vez, expandiu os limites do seu mercado. A este tipo de estratégia, incipiente no Brasil, o professor dá o nome de criação de mercado com altruísmo.
“Esses novos valores perturbam muitos empresários brasileiros, pois trazem uma nota dissonante à equação com a qual estão acostumados em seu negócio. Eles enxergam a responsabilidade social como um problema adicional para resolver. Como se já não bastassem todas as suas preocupações, ainda vem a sociedade civil pressionar para o consumo consciente, o direito à cidadania, a preservação ambiental! Os empresários brasileiros estão ainda na fase de reclamar. Os que têm bom senso buscam construir um novo modelo de negócios”, analisa o acadêmico.

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