A violência contra a mulher em números
Mulheres que já sofreram violência doméstica 15,4%
Motivos:
Álcool 45,5%
Ciúmes 22,8%
Falta de dinheiro 6,5%
Traição conjugal 4,9%
Uso de drogas 4,9%
Influência de familiares 4,1%
Influência das amizades 2,4%
Outros vícios 2,4%
Não sabe / não respondeu 6,5%
Tipo de violência:
Física 58,5%
Psicológica 10,6%
Moral 8,9%
Sexual 4,9%
Todas as anteriores 17,1%
Perfil do agressor:
Tio/Primo 0,8%
Pai 2,4%
Namorado 4,1%
Companheiro 12,2%
Marido 74,8%
Não sabe / Não respondeu 5,7%
Fonte: DataSenado 2007
As meninas de turbante no país das infâncias perdidas
Ricardo Voltolini
No país que ocupa o nada confortável posto de 63 no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e a sexta posição entre as nações mais desiguais do mundo, a violência contra a mulher nem sempre é praticada por um homem, entre quatro paredes e protegida pelo silêncio constrangido da vítima. Ela pode ocorrer também a céu aberto, sob a vista do poder público, como resultado de circunstâncias evitáveis e de uma fortuita combinação de fatores como a miséria, religiosidade e a falta de informação.
Este é o caso das “meninas de turbante” da região amazônica, presas fáceis de uma fatalidade cujas cicatrizes, graves e indeléveis, poderiam ser evitadas com educação preventiva, boa vontade das autoridades públicas e uma solução tecnológica de baixo custo. Sobre elas é importante dizer que são personagens de uma história, com jeito de lenda, que só se passa em um lugar do mundo, no Pará, muito longe, portanto, da mira da mídia dos grandes centros e da atenção solidária dos demais brasileiros urbanos.
Enviado especial da revista IdéiaSocial, o editor de fotografia Érico Hiller esteve em Belém, no mês de fevereiro, onde realizou o belo ensaio fotográfico que ilustra esta reportagem, conversou com algumas meninas de turbante e colheu impressões, transformadas em um texto (ver página XX) e notas de viagem, sobre a paisagem humana de um Brasil que, em sua própria avaliação, “me fez pensar nas pessoas que amo, na injustiça social deste nosso País e no quanto é revoltante ver acontecer algo que poderia ser evitado”
Naturais de Belém (PA) e cercanias, as “meninas de turbante” vivem junto aos igarapés de Altamira, Barcarena, Breves, Cametá, Portel e Santarém, onde o barco é o principal meio de transporte. Estimativas conservadoras indicam que, pelos leitos dos rios, em média 50 mil embarcações levam diariamente os ribeirinhos para o trabalho, a escola, o passeio e a igreja. Rudimentares em sua estrutura e construção, os barquinhos atendem pelo nome de popopô graças ao ruído provocado por seus motores que, em vez de se situarem na ponta, ficam no meio para dar equilíbrio à navegação.
Nesse cenário de filme de selva opera-se uma tragédia sem similar no mundo, que, desde a década de 60, já interrompeu o curso normal da vida de centenas de pessoas, majoritariamente crianças (65%) do sexo feminino (80%): na pressa de chegarem ao seu destino ou mesmo porque adormecem em virtude das longas distâncias que precisam percorrer, alguns segundos são fatais para que as meninas amazônicas deixem seus longos cabelos enroscarem no eixo descoberto dos motores. O resultado é o escalpelamento. Rápido, sumário e traumático.
Acidentes reforçam exclusão entre os já excluídos
Não é difícil imaginar o que significa um ferimento como esse para as jovens vítimas e suas famílias. Algumas das moças não resistem ao duro golpe. A maioria, no entanto, não apenas sobrevive ao acidente como carrega consigo as suas marcas físicas e psicológicas, chagas que não se secam mesmo após extenso período de tratamento –penoso para as vítimas, triste para os pais e caro para o sistema público de saúde.
Tão dolorido quanto a perda total ou parcial do couro cabeludo, orelhas, sobrancelhas e pálpebras ou ainda a cegueira, conseqüências previsíveis do escalpelamento, é ter que cobrir, com bandagens e lenços, as feridas de uma mazela que destrói a auto-estima, nega o direito tão feminino á vaidade, prejudica a integração ao grupo social em uma fase especialmente importante da formação do ser humano e exclui brasileiras que deveriam poder brincar, namorar e viver uma vida digna e feliz.
Apenas para se ter uma idéia do impacto causado pelo acidente: alguém que perde as pálpebras está condenado a ficar com os olhos abertos para o resto da vida; já quem perde a sobrancelha terá dificuldade, por exemplo, de sorrir. Todas as demais expressões do rosto perdem luz e brilho. Não por outro motivo, as “meninas de turbante” vivem tristes e taciturnas, precisam de intenso acompanhamento psicológico para suportar um período de luto em vida. Ao longo do tratamento, elas deixam de se alimentar, de freqüentar festas ou mesmo de conviver com os amigos. Como muitas delas abandonam a escola, passando a depender financeiramente dos pais, comprometem a sua formação educacional para o futuro. Durante a reabilitação, marcada por sucessivas cirurgias, seus pais se vêem obrigados a largar o trabalho, o que aumenta ainda mais o drama familiar.
Médico quer levar “sorriso para os rios”
O trágico destino das meninas de turbante ainda causa muita indignação no paraense Cláudio Britto. Cirurgião plástico por formação, Britto cansou de atender casos de escalpelamento na Santa Casa local, muitas vezes, no passado, sem os equipamentos adequados para realizar procedimentos complexos. Foi pensando em pôr fim a este quadro que ele criou, em 2001, com amigos, a Associação Sarapó, nome de um peixe típico da região, conhecido por sua agilidade, que serviu como apelido do também médico Antonio Juracy de Britto, um ativista da causa da melhoria da qualidade de vida das populações ribeirinhas.
A Sarapó é uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que tem como missão realizar atividades, culturais e científicas, sensibilizando a sociedade para o problema e orientando as comunidades a evitá-lo. Para eliminar o escalpelamento, Britto e um grupo de médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e pedagogos criaram um plano de mobilização , o Sorriso nos Rios, dividido em três fases: prevenção, tratamento e reabilitação social. No campo preventivo, a Sarapó atua em duas frentes. Uma visa educar as mulheres para que, durante as viagens de barco, prefiram os lugares da frente e nunca usem os cabelos soltos – vale ressaltar que, nesta região, os cabelos são propositalmente longos seja por convicções religiosas seja porque simbolizam a feminilidade e um padrão de beleza socialmente valorizado.
Carenagem de proteção é solução barata
Em outra frente, a organização trabalha para a aprovação de uma lei estadual que torne obrigatório o uso de uma carenagem de ferro para proteção do eixo dos motores – a Alumínio Brasileiro S.A (Albras) criou uma solução simples e barata (algo em torno de R$ 100) que, devidamente implantada, reduziria a zero o risco de acidentes. “Até hoje, pouco foi feito por falta de determinação política na condução do processo. O governo diz que faz, mas nada acontece. A nossa principal dificuldade é ampliar a consciência social a respeito do problema para que a sociedade paraense passe a cobrar mais respostas das autoridades públicas”, lamenta Britto, ressaltando a demora na tomada de decisões públicas relativamente simples que poderiam poupar a vida de crianças e jovens.
Altos custos financeiros e sociais
O escalpelamento –segundo Britto – pesa nos cofres públicos. Como cada caso é um caso, não é possível estimar um custo financeiro geral. Mas, pelas contas do cirurgião plástico, a conta é salgada. “No período inicial, que vai da enxertia á alta, a paciente utiliza um leito hospitalar e a estrutura de uma equipe técnica de 13 especialidades por um período de, no mínimo, três meses. Isso custa algo entre R$ 80 mil e R$ 100 mil. Em seguida, submete-se a uma série de cirurgias de reparação, todas elas de alto preço. Como normalmente é menor de idade e mora em localidades distantes de Belém, ela participa de um programa do governo federal que se chama tratamento fora do domicílio (TFD). Passagens e estadia dos pais são custeadas pelo Sistema Único de Saúde”, explica.
Além do financeiro, há também um custo social. “Muitas vezes, traumatizadas, as famílias se transferem de seus locais de moradia originais e passam a inchar bolsões de pobreza nos grandes centros. Com isso, algumas dessas famílias entram em processo de degradação”, conta.
Porta-vozes de uma causa que, na verdade, atinge o estrato de excluídos num país que se acostumou a tratar os seus habitantes mais pobres como cidadãos de segunda classe, o cirurgião plástico do Pará e os seus amigos reforçam algumas características que fazem do terceiro setor brasileiro um dos mais ricos campos de experimentação de soluções sociais do mundo: a indignação solidária diante do sofrimento da comunidade, a livre iniciativa de solucionar problemas que o Estado reluta em tomar para si, a inteligência de atacar a causa e não apenas os efeitos, e a obstinação para não abandonar uma corrida com muitos obstáculos. A Sarapó representa a causa de um Brasil que o Brasil não conhece
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