Especial – Da reclusão à inclusão (parte 2)

Especial – Da reclusão à inclusão (parte 2)

Organizações de terceiro setor apóiam empresas na capacitação e colocação profissional


Nem todas as empresas realizam sozinhas o processo de recrutamento e seleção. Muitas preferem recorrer aos serviços especializados de organizações de terceiro setor, como o Instituto Paradigma, que faz um trabalho de educação corporativa e desenvolve projetos adequados á realidade de cada organização. “Nossa tarefa é instrumentalizar as empresas com vistas a acelerar o processo de inclusão. Para isso, fazemos a capacitação da equipe de gestores, envolvendo também a área de responsabilidade social, de comunicação e de engenharia”, explica Flávia. Montar grupos internos de discussão ou mesmo contratar arquitetos para tornar os ambientes de trabalho mais acessíveis são algumas das soluções que podem nascer do apoio de especialistas no tema. “Tem muita gente que simplesmente não sabe como se comportar, por isso é importante criar estratégias para que as pessoas tirem suas dúvidas e se sintam menos inseguras”, diz Flávia.
A Carpe Diem tem uma outra estratégia de atuação. Lá, é a pessoa deficiente que escolhe com o que deseja trabalhar. A entidade então diagnostica as habilidades do candidato e realiza a mediação com a empresa, passando pelo processo de seleção, contratação, sensibilização da companhia e acompanhamento profissional. “Fazemos com que a empresa se adeqüe ao funcionário e vice-versa”, afirma Glória. Já a Sorri-Brasil, que atua desde 1972 com a inclusão social e profissional de deficientes, procura estabelecer parcerias com o poder público, empresas, universidades e outras ONGs. “Nossa meta hoje é transferir para quem precisa o know how desenvolvido nesses trinta anos de trabalho”, expõe a superintendente Carmen Bueno. Além de serviços de consultoria e palestras, a Sorri Brasil dirige suas ações tanto para os parceiros, com capacitações de equipes de recursos humanos e outros funcionários, quanto para os deficientes atendidos, por meio de oficinas profissionalizantes (em artes, computação, corte e costura, teatro, dança e artesanato, por exemplo), colocação no mercado de trabalho e projetos de empreendedorismo que visam a geração de renda. Os participantes dos programas também recebem assistência médica, psicológica e social. “Queremos que as pessoas sejam contratadas pela sua competência”, defende Carmen.
Ainda segundo a mesma pesquisa da AGMKT, os funcionários deficientes tendem a permanecer nas empresas por mais tempo. O desemprego, por sua vez, atinge mais pessoas sem deficiência (7%) do que com (6,2%). O tipo de deficiência afeta diretamente o nível de dificuldade de inserção no mercado de trabalho. O estudo demonstra que, dos 14,5% deficientes na ativa, 58% são visuais, 54%, físicos e 38%, auditivos. Para a Carpe Diem, as pessoas com deficiência mental são as que têm menos espaço nas empresas. De acordo com Glória, a diferença das companhias envolvidas com a causa da inclusão para aquelas que só cumprem a Lei de Cotas, é que essas últimas tendem a contratar apenas pessoas com deficiência física. Mas o problema não se encontra somente na escassa oferta de postos de trabalho. Há outros três obstáculos. O mais comum é a resistência das famílias. Mas pesam também a falta de capacitação e o preconceito, sempre ele. “As empresas querem formação, mas se mudarem o seu olhar e passarem a acreditar nos deficientes, entenderão que existem muitas funções nas quais eles podem trabalhar. Um dos papéis mais importantes das ONGs é justamente pressionar para uma mudança de consciência”, prega.
Ana Paula Martins, 22 anos, é um exemplo de inclusão profissional bem-sucedida. Com Síndrome de Down, ela ingressou na Carpe Diem há dois anos e, desde então, começou a trabalhar e a estudar em curso supletivo de quinta à oitava séries. Durante a semana, passa as manhãs na organização, onde recebe acompanhamento e apoio para lidar com o dinheiro, o trabalho, os estudos, a família, o próprio comportamento e também o namorado, com quem está há um ano e já planeja morar junto. Na Matec Engenharia, onde trabalha, Ana Paula organiza notas fiscais e tira fotocópias. “Gosto de trabalhar porque me sinto satisfeita com o que faço e totalmente incluída. Na minha família todos também me aceitam como eu sou, com Síndrome de Down.”
Conceito de inclusão está relacionado à garantia de direitos elementares

A noção de inclusão compreende mais do que acesso a atendimento médico, escola regular e trabalho. Envolve, a rigor, o respeito a uma convivência igualitária, sem restrições e preconceitos, algo que só pode ocorrer com a garantia de direitos constitucionais elementares como, por exemplo, o de ir e vir. Eis aí um dilema a ser superado. Difícil, mas crucial. A maioria das cidades brasileiras não está preparada para as pessoas com deficiência pelo simples fato de que foram planejadas – se é que pode se chamar de planejamento a expansão urbana observada nas últimas cinco décadas – para atender à regra e não à exceção. Calçadas esburacadas, semáforos convencionais, ausência de rampas e outras tantas más condições de acessibilidade tornam muitas vezes impossível a realização de atividades simples, como circular pelas ruas, utilizar o transporte público, passear nos parques ou freqüentar cinemas, teatros e museus. No mar de descaso, há felizmente, algumas as ilhas de atenção. José Olímpio, 47 anos, mora em uma delas: nos últimos 20 anos, Curitiba, a capital paranaense, promoveu uma revolução na acessibilidade, alcançando padrões internacionais. “A presença das pessoas com deficiência nas ruas é um fator decisivo para a inclusão. Cria-se um clima de humanização na cidade, e reforça-se uma cultura de conscientização sobre a causa”, comemora Olímpio, que, na infância, sofreu seqüelas graves da Poliomielite e hoje é tetraparético, movimentando com dificuldade as pernas e os braços.
A história de Olímpio é semelhante a de tantas outras pessoas com deficiência. Precisou interromper sua formação escolar porque a escola não respeitava as suas dificuldades. E quando começou a trabalhar, viu-se preso ao âmbito doméstico. Ele atribui à família sua efetiva inclusão social. Hoje profissional da área audiovisual, compositor da trilha sonora, roteirista e co-produtor do filme “O Sal da Terra”, Olímpio não se priva de nada por causa de sua dificuldade de locomoção. Já viajou para diversos lugares, freqüenta as atrações culturais de Curitiba e se diverte com os amigos que, se antes não sabiam lidar com a situação, hoje nem se lembram de que ele é deficiente. Já Inês Lima, por sua vez, vive na pele o drama de morar em um lugar longe de ser exemplo de inclusão. Residente na zona norte de São Paulo, ela reluta em sair de casa para passear com a filha Luiza Mel, porque considera as ruas da maior cidade da América do Sul um território para lá de hostil aos que precisam circular com cadeiras de rodas. “A condução é muito difícil, tenho que levar ela no colo, ninguém ajuda, as calçadas são horríveis”, reclama.
Embora não tenham a prerrogativa de atuar diretamente na melhoria das condições de acessibilidade, as ONGs exercem pressão junto ao poder público para mudanças na lei e na arquitetura das cidades. Além disso, desenvolvem projetos específicos, nas áreas de cultura, artes e esportes, que têm como objetivo melhorar a qualidade de vida das pessoas com deficiência, fazendo-os se sentir integrados á vida urbana. A PPP, por exemplo, formou um time de basquete para cadeirantes e apóia o núcleo de reabilitação para deficientes físicos da Fórmula Academia, incentivando a prática de exercícios físicos. Uma das fundadoras dessa organização, Mara Gabrilli experimentou a sensação de mudar o lado do balcão quando assumiu, no início de 2005, o comando da Seped, em São Paulo. Pular do terceiro para o primeiro setor obrigou-a – afirma – a revisar os desafios, que são completamente diferentes, tanto do ponto de vista de foco quanto de amplitude. “Uma ONG escolhe uma missão e, por conta dela, se propõe a desenvolver determinados projetos em benefício de uma causa. Já o governo não faz por boa vontade. Ele tem o dever de proporcionar qualidade de vida para essas pessoas, de assegurar-lhes as mesmas oportunidades que têm todos os outros cidadãos”, explica.
Inédita no País, a secretaria foi criada em 2005 com o objetivo de articular ações governamentais e trabalhar pela melhoria da qualidade de vida dos deficientes em todos os âmbitos. Além de programas nas áreas de saúde, educação e trabalho, o órgão estimula a inclusão por meio do esporte, cultura, informação, transporte público e acessibilidade no espaço físico metropolitano. O projeto “Cão-Guia”, por exemplo, prevê a criação de um centro de treinamento gratuito e a doação de cachorros para guiarem pessoas cegas. Segundo Mara, são muitas as dificuldades práticas para colocar em funcionamento leis de caráter inclusivo, porque a cidade não foi planejada para incluir. Mas, em sua avaliação, o balanço de dois anos é positivo, graças, sobretudo, à estratégia que adotou de trabalhar em parceria com as ONGs e o setor privado.
A informação é outra ferramenta importante na promoção da inclusão social dos deficientes. A Sorri-Brasil determinou como um de seus principais projetos a rede Entre Amigos, um site com textos relacionados à deficiência, artigos críticos, dicas para o dia-a-dia e indicações culturais e de eventos sobre a inclusão. Os visitantes também podem tirar suas dúvidas diretamente com as organizações e trocar informações e experiências por meio de fórum, mural e bate-papo eletrônico. A Sorri coordena uma rede de 30 instituições membros. A intenção é encaminhar as pessoas para outras entidades só depois de oferecer o máximo possível de informações. “A legislação passou a garantir uma série de mecanismos de proteção ao longo do tempo, mas as pessoas não sabem disso. Se não se conhece o direito, como se pode reivindicá-lo?”, diz.
Comunicação pela inclusão é o tema de trabalho da Escola de Gente, fundada em 2002 e dirigida pela jornalista Claudia Werneck. “Entendemos a comunicação como um direito humano”, explica. Na avaliação de Claudia, jornais, revistas, rádios e TVs não têm sido usados adequadamente no combate à discriminação de pessoas com deficiência. Pelo contrário, nesses veículos observam-se “as mais sutis e silenciosas práticas de segregação”. O papel da organização é capacitar profissionais e veículos de comunicação para que eles ajam de maneira inclusiva, ou seja, não usem discursos preconceituosos e estimulem, por meio da informação, a mudança nas práticas e no modo de pensar da sociedade em relação aos deficientes. Para a dirigente, um dos pontos fundamentais no esforço da garantia de direitos é a terminologia utilizada pelos meios de comunicação. “Não estamos falando apenas de um discurso politicamente correto, mas inclusivamente correto, porque é sustentado por reflexão. As palavras, muitas vezes, carregam, ainda que subjetivamente, preconceitos e estigmas”, afirma a jornalista, para quem a expressão “portador de deficiência” caiu em desuso desde 1999 e não existe restrição ao uso da palavra “deficiência”.
A Escola de Gente foi uma das organizações de terceiro setor brasileiras participantes da “Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, realizada em agosto último, em Nova York, na sede das Nações Unidas (ONU). O documento gerado a partir desse encontro registrou um diagnóstico de diversos problemas e também estabeleceu o reconhecimento dos direitos de deficientes de todo o mundo. “Pode-se dizer que o texto da Convenção ficou bastante amplo”, define Claudia. Segundo a jornalista, os 50 artigos contemplaram temas como igualdade e não-discriminação, mulheres com deficiência, crianças com deficiência, acessibilidade, direito à vida, situações de risco e emergências humanitárias, legislação, acesso à liberdade de expressão e opinião, à justiça, informação, educação, saúde, ao trabalho e emprego e à participação na vida pública e política.
Em média 8 mil pessoas por mês adquirem deficiência no Brasil, 46% das quais vítimas da violência urbana, segundo a pesquisa da consultoria i-Social. Além disso, dados do IBGE revelam que, por causa da melhoria dos serviços de saúde e da queda da taxa de natalidade, a sociedade brasileira está ficando cada dia mais velha. Isso significa um número crescente de idosos nas ruas, muitas vezes com dificuldade de locomoção ou outro tipo de deficiência adquirida em razão da idade. “A sociedade inclusiva não representa um interesse apenas das pessoas com deficiência, mas de todos os que em um ou outro momento da vida se encontram limitados fisicamente, como mulheres grávidas, idosos e pessoas que sofreram acidentes”, argumenta Olímpio. Claudia concorda com essa análise, e acrescenta uma observação. Para a especialista, é difícil provar que o tema é de interesse público e relevância social. “Não é um assunto ‘daquelas famílias’ que tiveram ‘menos sorte’ ao ter sua prole”, diz.
Todos os entrevistados concordam sobre o avanço na luta pela garantia de direitos e inclusão das pessoas com deficiência. Mas também é unânime a opinião de que há muito por fazer e de que o esforço exige paciência, capacidade de articular alianças intersetoriais no âmbito dos municípios e estratégias inteligentes de comunicação e de persuasão para a mudança de cultura. Seja por meio de capacitações, mediações, captação de recursos ou parcerias, o terceiro setor tem – na opinião geral dos entrevistados – um papel decisivo a cumprir na melhoria da qualidade de vida dessas pessoas. E um desafio de fazer com que a sociedade aceite, respeite e aprenda a lidar com a diferença. Quanto mais se torna natural a convivência com as pessoas com deficiência, menos obstáculos se interpõem. Para Flávia Cintra, do Instituto Paradigma, a mudança que todos almejamos reflete uma sociedade mais democrática. “É um caminho sem volta.”
Documentário retrata luta contra preconceito em relação à Síndrome de Down

A história de Joana Mocarzel ficou conhecida pelo país com a novela Páginas da Vida (Rede Globo), na qual representa Clara, uma menina com Síndrome de Down. O destaque de Joana no horário nobre com um tema nunca antes trabalhado nas telenovelas brasileiras colocou sob os holofotes o filme de seu pai, “Do Luto à Luta”. No documentário, o jornalista Evaldo Mocarzel procura quebrar tabus e preconceitos, principalmente familiares, em relação à deficiência mental, em específico a Síndrome de Down.
“O filme foi fruto da minha relação com a minha filha. Fiz o filme que gostaria de ter assistido quando ela nasceu”, contou Mocarzel em uma entrevista ao Jornal da AME (Amigos Metroviários dos Excepcionais) logo após o lançamento do documentário, em 2005. Segundo ele, quando descobriu que Joana, hoje com seis anos, tinha Down, foi como se um prédio desabasse em sua cabeça, porque ele não tinha informações sobre o assunto. “Decidi fazer um curta-metragem que se transformou em um filme para atacar a rejeição que cerca esse tema”, conta.
Mocarzel retrata o cotidiano e a história de algumas famílias de deficientes, com depoimentos que ocupam a maior parte do filme. O foco fica na sexualidade e nas atividades dos Downs, como a dança, o surfe, hipismo, vôlei e futebol, exemplificando a vida normal levada por essas pessoas.
O ápice do filme é o momento em que o jornalista apresenta Ariel e Rita, um casal de Downs que finaliza a seqüência de testemunhos. Os dois, na época juntos há quatro anos, falam sobre seus planos e sonhos para o futuro — serem cineastas. Nenhum deles quer filhos. “Não tenho paciência para cuidar de crianças”, explica Ariel.
Durante a entrevista, Rita esclarece que os dois dormem um na casa do outro, mas em camas separadas, já que ainda não são casados. No final do documentário, os dois se unem em matrimônio ao som da canção “Você é linda”, de Caetano Veloso. Depois contam para o diretor sobre a lua de mel: “Minha mãe deixou a gente em um hotel. Foi muito gostoso”, lembra Ariel, sorrindo.
Manual ensina discurso inclusivamente correto

O papel da mídia como principal divulgadora de informações a torna também responsável pelo discurso inclusivo. A ONG Escola de Gente, especializada na capacitação de comunicadores pela causa da sociedade para todos, dispõe de uma cartilha que ensina os profissionais do ramo a contribuírem com a quebra de preconceitos e garantia dos direitos das pessoas com deficiência.
Manual da Mídia Legal, de 2002, reúne reportagens e peças publicitárias analisadas por estudantes de diversos cursos da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e comentadas pela Escola de Gente e o Ministério Público. Nos textos, são destacados os erros mais comuns dos veículos de comunicação, com explicações teóricas baseadas nos direitos humanos e na legislação brasileira.
As falhas no tratamento dos assuntos relacionados às pessoas com deficiência refletem não apenas uma fraqueza da mídia, mas da sociedade, que não possui informações sobre o tema. Por isso, o manual é voltado principalmente para os jornalistas, suas fontes e os formadores de opinião, que podem multiplicar o valor da não-discriminação à população.
A cartilha também traz diferenças entre terminologias e informações sobre a legislação que trata dos direitos dos deficientes. Além dessa publicação, a entidade produziu outros três livros, com o foco na saúde, educação e políticas públicas. Os manuais podem ser baixados gratuitamente pelo site www.escoladegente.org.br.
Os cinco tipos de deficiência

O artigo quarto do Decreto número 3.298, de 20 de dezembro de 1999, distingue e define a deficiência em cinco tipos:
Física – quando a função física fica prejudicada em razão da alteração completa ou parcial de um ou mais membros do corpo;
Auditiva – perda parcial ou total da capacidade de ouvir sons, com seis diferentes níveis de surdez;
Visual – capacidade medida por exames médicos. Percepção visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, e/ou campo visual inferior a 20° (tabela de Snellen);
Mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média e manifestado antes dos 18 anos. A pessoa também apresenta dificuldades com pelo menos duas áreas entre (a) comunicação, (b) cuidado pessoal, (c) habilidades sociais, (d) utilização da comunidade, (e) saúde e segurança, (f) habilidades acadêmicas, (g) lazer e (h) trabalho;
Múltipla – associação de duas ou mais deficiências.

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