Entrevistas – Repórter da gênese, profeta da boa nova (parte 2)

Entrevistas – Repórter da gênese, profeta da boa nova (parte 2)

IS. Em lugares assim, intocados, o tempo deve ter uma outra dimensão…
 
 
SS. É uma outra noção de tempo. Para sentir e ver as coisas como elas são, o fotógrafo precisa de muito mais tempo. Um tempo diferente para identificar, olhar, esperar acontecer. É preciso calma para esperar acontecer. E acontece. Essa noção de tempo dos fotógrafos permite um espaçamento muito mais interessante na vida. Talvez por isso, possivelmente, eles vivam muito. Cartier-Bresson morreu aos 97 anos. Manoel do Prado, aos 103. Nesse tipo de trabalho que tenho feito não vivo a solidão. Quando estou sozinho canto muito. Para me aproximar de um animal, imagino com que altura devo chegar. Se chego muito alto, posso despertar medo. Então, me ajoelho e fico na altura dele. Preciso trabalhar com o vento. Meu cheiro não pode chegar muito forte, não pode assustar. Preciso me vestir com uma cor neutra, que não seja agressiva. Tudo isso preenche o tempo. É um prazer e um grande privilégio. Nunca sinto solidão.
Hoje também não viajo sozinho como eu fazia quando fotografava o animal humano. Pela primeira vez levo comigo um assistente. Tanto para ajudar a carregar o equipamento, sempre muito pesado, quanto por questões de segurança. É muito mais perigoso fotografar a natureza do que fazer uma reportagem de guerra. Muito mais! Porque o comportamento dos animas é imprevisível. Às vezes, entra-se numa área que é defendida por um animal. E ele pode te atacar. O assistente precisa ser alguém que conheça os animais e as dificuldades de andar nesses lugares. Na Kamchatka, tivemos que tomar muito cuidado com os ursos. Nos últimos quatro anos, esses animais mataram dois fotógrafos. E fizeram isso por medo, para defender o seu território. A patada de um urso de 800 quilos pode arrancar uma cabeça. Na Patagônia, um elefante-marinho de cinco toneladas quase me matou. Ao me aproximar de um deles, que tomava conta de um harém com 120 fêmeas, fui visto como concorrente e ele partiu para o ataque. Enquanto fugia, não deixei de fotografar. Uma hora eu caí. E só me salvei porque o motorista que estava comigo levantou o tripé. Assustado, o animal parou um segundo para refletir sobre aquilo que era maior do que ele. Foi o tempo de eu levantar e correr. Também na Kamchatka, eu estava caminhando em vulcões. A 4 mil e quinhentos metros de altura, há muitas falhas no piso, e como elas ficam cobertas de neve, muitas vezes não são percebidas. Não saberia lidar com segurança num lugar desses sem o meu assistente, Jacques, 58 anos, guia de alta montanha, um especialista em segurança na neve.
IS. A propósito, que lugares você já fotografou para o Projeto Gênesis e quais ainda pretende registrar?
 
 
SS. Estive conhecendo a agricultura primitiva e a paisagem nativa do Bhutão, no Himalaia; vulcões e gorilas no Parque Nacional Virunga, na África; fotografei fauna e flora na Ilha de Galápagos; baleias da Patagônia e Antártica.
Estamos programando, para o final do ano que vem, uma expedição junto com o Amir Klink. Vamos encontrá-lo na Antártica e seguimos para as Ilhas Sandwich, um conjunto de 23 ilhas praticamente inacessíveis. Só duas delas possuem acesso. E só dois navegadores estiveram lá, até hoje. Depois seguimos para a Geórgia do Sul e terminamos no Rio de Janeiro. Devemos começar no final de dezembro de 2007 e terminar em março de 2008.
Para a realização desse projeto, estamos trabalhando com algumas entidades internacionais. O Departamento do Patrimônio Universal da Unesco é um dos patrocinadores. A emissão de uma ordem oficial pela Unesco facilita muito a penetração nas áreas. Contamos, também, com o apoio da UNEP, que é o programa das Nações Unidas Para o Meio Ambiente, baseado em Nairóbi (Quênia), na África; com a Conservation International, e mais três fundações americanas. Além disso, uma série de jornais e revistas internacionais e empresas que já mencionei, aqui no Brasil, estão apoiando o Projeto Gênesis.
IS. Conhecer tão de perto esses lugares intocados e suas formas de vida mais primitivas é uma forma de compreender mais sobre o animal humano e de projetar seu futuro?
 
 
SS. Sem dúvida! Vivi a fabulosa experiência de fotografar uma família de gorilas, em Uganda, numa cadeia de montanhas na África. Na realidade, os gorilas te recebem como uma visita. Entramos na cada deles e descobrimos lá uma relação muito parecida com a nossa. Existe um respeito vertical como na família dos humanos. O filho respeita o pai, o pai respeita o avô. Numa dessa visitas, conheci um grande gorila, idoso e experiente. Ele estava próximo de morrer. E então surgiu um gorila novo para conquistar a liderança da família de 23 membros. Era um pouco menor, mas tinha músculos perfeitos. Só que ninguém prestava atenção, ainda que ele tentasse se aproximar de todas as formas. Sempre que ele os abordava, o velho fugia com o grupo. Em respeito ao grande pai, as fêmeas também viravam as costas para ele. Inconformado, o jovem gorila dava tapas contra a própria cabeça, sem saber o que fazer. Olhando esse quadro, pude imaginar o que talvez tenha sido a nossa espécie há 800 mil anos, quando ainda tínhamos pêlo no corpo, unhas grandes e nenhuma roupa. É uma relação extremamente próxima. Somos primos mesmo. E isso é muito forte. Aí surgem questões filosóficas. Somos um animal muito recente neste planeta. Somos uma espécie criança. Muitas espécies mais poderosas do que a nossa desapareceram da Terra. Os dinossauros, por exemplo. Com todo o seu tamanho, seu peso e sua capacidade física, viveram 150 milhões de anos. E há mais de 100 milhões de anos não existem mais. A nossa espécie corre sério risco de desaparecer também. Nos últimos 2 milhões de anos, tivemos eras glaciais que duraram em média 20 mil anos cada uma. Possivelmente, a nossa espécie não tenha conhecido nenhuma época de aquecimento ainda. Mas estamos acelerando essa chegada. E mesmo com todo o aparato tecnológico que temos, não estamos seguros de nossa sobrevivência. Esse tipo de reflexão um indivíduo consegue fazer com mais intensidade quando está de frente para o seu planeta. E sente todo o poder desse universo, observando a idade geológica das coisas, que se conta em centenas de milhares de anos. Em termos geológicos, não somos nada. Contemplar isso é de uma riqueza fenomenal.
IS. Você acredita que a sua fotografia possa despertar, também no público, o interesse por preservar o meio ambiente?
 
 
SS. A linguagem da fotografia pode sim. Quando era menino, cheguei a estudar o esperanto, porque achava que ele se transformaria numa linguagem universal. Na escola secundária, foi a vez do latim que, imaginava-se, seria uma língua do tipo “denominador comum”. Hoje estudamos o inglês, pensando também que é uma linguagem universal. Mas ele não é. No máximo, é uma linguagem técnica. Só há pouco tempo se descobriu que a verdadeira língua universal é a imagem. Qualquer coisa que se escreve em imagem aqui em Minas Gerais pode ser lida, sem tradução, numa província do interior da China ou da Rússia. E ela tem a força dos símbolos. Quando estou com minha câmera no olho, vejo passar uma relação da minha história pessoal e de tudo o que aprendi na vida. Lembro das coisas que vi, dos desenhos que fiz, da minha mãe. Essa linguagem dos símbolos as pessoas compreendem porque é delas também. Faz parte de um conjunto informativo que recebemos na vida. Essa linguagem tem poder. Não acredito num anúncio no sentido profético. Não acredito no ser iluminado, capaz de sintetizar algo que os outros não tiveram capacidade de ver. São níveis de evolução, em que se acumula informação e conhecimento. Hoje estou fotografando a natureza. Mas, neste exato momento, 100 outros fotógrafos estão fazendo mais ou menos a mesma coisa. Porque chegou o momento da necessidade de fazer esse tipo de fotografia! É como na época da União Soviética em que apareceu o Gorbatchev e todo mundo disse: “Ah, esse cara é fantástico”. Mas tinham dois mil Gorbatchevs na Rússia, porque havia chegado o tempo de maturação de um sistema. Houve um acúmulo de parâmetros que levaram a esse salto. Acho que tudo é parte de um sistema de informação. O planeta se encontra num ponto em que começa a correr risco de extinção. Estamos todos preocupados. O criador da Teoria de Gaia, entrevistado recentemente nas páginas amarelas da revista Veja, o Al Gore (ex-vice-presidente dos EUA), com o seu filme em defesa do meio ambiente, eu com as minhas fotografias, vocês com a revista Idéiasocial. Todos estamos na mesma direção. A grande vantagem é que essa percepção é feita mais ou menos em conjunto. E isso é importante. Por que estamos desenvolvendo um trabalho no Vale do Rio Doce? Porque o projeto é necessário! Não porque nós dois, eu e a Lélia, somos mais preocupados. Estamos tão preocupados quanto os outros. Apenas tivemos a oportunidade de fazer e fomos ajudados por pessoas de boa vontade que estão ao nosso redor. Está surgindo o amortecedor que possivelmente vai impedir a extinção. Na verdade, é o instinto de sobrevivência que começa a aparecer. E começa a aparecer para todos.
Gênesis leva educação ambiental para estudantes do Espírito Santo
 
Além de uma enorme reportagem fotográfica, o Projeto Gênesis, de Sebastião Salgado tem um braço pedagógico. Desde o início de 2006, 184 escolas da rede pública e particular de ensino da região da Grande Vitória, no Espírito Santo, participam do Projeto Educacional Gênesis – experiência-piloto agora em fase de avaliação. O alvo são alunos do Ensino Fundamental II (4ª a 8ª séries) e do Ensino Médio.
O projeto conta com apoio da Unesco e da Arcelor Brasil, que financiou a produção do material didático para os professores. O kit é composto por 4 fascículos contendo as notas de viagem do autor, cada um deles acompanhado de 10 pranchas fotográficas em alta resolução, além de cartazes, CDs e vídeos. Uma maneira de os alunos conhecerem a diversidade do planeta sem precisar sair da sala de aula. “Meu objetivo não é apresentar simplesmente um mundo exótico. Ao contrário, desejo despertar a consciência sobre a necessidade de proteger e preservar todos os seres vivos e o mundo em que eles habitam” – explica Salgado.
Para isso, os alunos são incentivados a fazer uma releitura das fotos de Sebastião Salgado. E compará-la à realidade local, de sua própria comunidade. Numa das escolas, depois de visita monitorada a uma ilha da região, em que observaram o modo de vida da comunidade, os alunos tomaram a iniciativa de escrever uma carta ao prefeito, sugerindo melhorias para o bairro. “O interessante nesse projeto educacional é que ele não tem direito de autor nem para as fotografias nem para o texto” – esclarece Salgado. “Nossa vontade é que ele seja ampliado para o Brasil inteiro. Mas, para isso, precisamos que outras empresas se disponham a patrocinar os kits para os professores”. Atualmente, Sebastião Salgado negocia a expansão do Projeto Educacional Gênesis com o governo de Minas Gerais. Fora do Brasil, a Província da Astúrias, na Espanha, também já demonstrou interesse na adoção do projeto. (C.P.)
 

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