Cinema Social – O teatro da Justiça

Cinema Social – O teatro da Justiça

No documentário “Justiça” (2004), a diretora Maria Augusta Ramos acompanhou a rotina de varas criminais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, procurando desvendar as relações entre os protagonistas dos atos que se desenrolam ali. Em seu longa-metragem mais recente, “Juízo” (2008), que recebeu o grande prêmio do júri no Festival Internacional de Documentários de Direitos Humanos de Praga (República Tcheca) e acaba de ser lançado em DVD, ela se mantém próxima do mesmo universo, ao registrar audiências de jovens infratores na II Vara da Justiça, também do Rio.
Seus procedimentos em ambos os filmes são idênticos. Fiel à escola do documentarista norte-americano Frederick Wiseman, pautada pela busca de objetividade (tão cara ao jornalismo) e de distanciamento do objeto de pesquisa (essencial à antropologia), Maria Augusta apenas instala câmeras nos ambientes que investiga, sem movimentá-las, e não faz perguntas. Assim, procura atingir o menor grau possível de interferência na realidade e reduzir ao máximo a manipulação do pensamento e dos sentimentos do espectador.
“Estou interessada nas relações humanas e em como o meio as influencia”, disse a cineasta a este colunista quando “Juízo” foi lançado nos cinemas, em março de 2008. “Meu barato é ver as pessoas interagindo.” Diferentemente do que fazem documentaristas como Michael Moore (“Tiros em Columbine”, “Fahrenheit 11 de Setembro”) e José Padilha (“Ônibus 174”), seu esforço é para que “o público possa refletir por si só e chegar às suas próprias conclusões”.
Em “Juízo”, Maria Augusta recorreu a um formato híbrido, que combina técnicas documentais com um pouco de ficção: para preservar a imagem dos infratores, ela os substituiu — nos planos em que aparecem de frente nas audiências, em casa e no cárcere — por jovens recrutados em circunstâncias sociais semelhantes às dos personagens verídicos. Na primeira fase do trabalho, 10 audiências foram filmadas e editadas. Depois, a cineasta e sua equipe saíram à procura dos “dublês”. Por fim, veio a gravação das sequências complementares.
Dois critérios orientaram o recrutamento dos atores: a semelhança física com os infratores (de costas) e a vivência de situações semelhantes, como a maternidade precoce. Todos se pareciam, segundo Maria Augusta, por conta de outra característica: a apatia. “Em comunidades carentes, é fácil encontrá-los. Eles são assim porque têm enorme consciência da miséria em que vivem e da falta de perspectivas. Viraram os ‘meus meninos’, com uma personalidade muito forte que procurei trazer para o filme.”
As histórias de vida dos atores dariam “outro filme”. “Queria muito humanizar a figura dos menores infratores, que é demonizada pela mídia”, afirma. Ao expor como funciona o “teatro da justiça”, Maria Augusta demonstra que “todos eles (funcionários públicos, infratores, advogados e famílias) desempenham papéis ali, mesmo sem a presença da câmera.” Que ninguém se iluda, contudo, com essa imagem que sugere alguma ficção: a ferida sociopolítica na qual toca “Juízo” é dolorosamente verdadeira.
* Sérgio Rizzo, 43 anos, é jornalista, mestre em Artes e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, crítico da “Folha de S. Paulo” e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: [email protected]

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