Dossiê Biomimética: ciência inspirada na natureza para criar soluções sustentáveis e regeneradoras

Dossiê Biomimética: ciência inspirada na natureza para criar soluções sustentáveis e regeneradoras

Um bom exemplo de aplicação da biomimética é a empresa europeia Sto, que criou uma tinta autolimpante inspirada
nas asas da Morpho, a borboleta-seda-azul. Crédito: Gerd Altmann por Pixabay.

Você sabia que existem painéis coletores de energia solar que imitam os girassóis no método de captação de luz? E que as lâmpadas de LED, bem mais econômicas do que as incandescentes, foram criadas inspiradas na radiação da luz dos vaga-lumes? Essas invenções surgiram a partir da biomimética, ciência baseada na natureza.

A palavra biomimética vem de bio = vida, mimesis = imitação, ou seja, uma imitação consciente da genialidade da natureza para criar inovação em produtos, processos, sistemas e formas de gestão. A ideia é olhar para a natureza como modelo, medida e mentora dos nossos projetos. Por meio dessa ciência, é possível procurar soluções eficazes e eficientes que sejam sustentáveis, que não prejudiquem o meio ambiente, que sejam regeneradoras e solidárias com toda a vida na Terra.

Embora pouco conhecida no Brasil, a metodologia da biomimética foi apontada em 2014 pela revista Forbes como uma das cinco principais tendências que vão orientar os negócios do futuro. E há estudos que apontam para isso, como o da Universidade Nazarena de Point Loma, na Califórnia, que estimou que o uso da biomimética deverá representar 300 bilhões de dólares no PIB dos Estados Unidos e gerar 1,6 milhão de empregos no país até 2025.

O estudo 11 Tendências de Sustentabilidade Empresarial no “Outro Normal” – realizado pela Ideia Sustentável, em parceria com a Plataforma Liderança com Valores e a Rede Brasil do Pacto Global – também se relaciona diretamente com os conceitos da biomimética, que estão diretamente ligados a ações de sustentabilidade, como veremos mais adiante.

Como surgiu a biomimética?
A palavra “biomimetics” (em inglês) apareceu pela primeira vez nos anos de 1950, com o acadêmico norte-americano Otto Schmitt, para descrever a transferência de idéias da biologia para a tecnologia. Mas foi somente em 1974 que o vocábulo entrou para o Dicionário Websters. Em 1982, o termo passou a ser utilizado como “biomimicry”. E em 1997, se tornou popular nos Estados Unidos com a cientista bióloga norte-americana Janine Benyus em seu livro “Biomimicry: Innovation Inspired by Nature” (em português: “Biomimética: inovação inspirada pela natureza”). Ela fundou o Biomimicry Institute, em Montana, e foi a responsável por propagar a metodologia no mundo todo. No Brasil, chegou apenas em 2003.

“A lógica por trás da biomimética é simples: vivemos em um planeta que funciona bem há mais de 4 bilhões de anos. Se temos, à disposição, uma experiência tão bem sucedida, por que não usá-la como referência para solucionar nossos problemas? Em última instância, por que não imitá-la? Se conseguirmos evoluir de um modelo linear e mecânico para um de sistemas vivos e circular, teremos a química e as melhores práticas [da natureza] ao nosso alcance”, diz Benyus em entrevista ao site Greenbiz.

Hoje, a biomimética se faz ainda mais necessária, uma vez que a humanidade enfrenta novos desafios, como a Covid-19, que evidenciam a sua própria vulnerabilidade. A resposta para esta e para futuras pandemias pode estar justamente na natureza. Mas como funciona essa metodologia na prática?

A metodologia que respeita a natureza

Os carrapichos serviram de inspiração para a criação do velcro. Crédito: AnniesPlanet por Pixabay.

No método criado por Janine Benyus, há duas formas de utilizar a biomimética. A primeira é partir de um desafio ou necessidade real (como poupar energia elétrica ou filtrar água) e investigar de quais estratégias a natureza dispõe para resolver tarefa semelhante. Um exemplo é o que fez a empresa alemã Arnold Glass. A companhia conseguiu resolver o problema da colisão de pássaros com vidros de arranha-céus. A empresa estudou florestas e descobriu que as aves não colidiam com teias de aranha graças a uma fibra que reflete luz ultravioleta. A partir dessa observação, aplicou fibras ultravioletas em vidros de prédios. Isso evitou a morte de centenas de pássaros.

A outra forma metodológica proposta por Benyus é olhar para determinado fenômeno natural, forma ou função desempenhada por um organismo ou sistema e pensar de que maneira ele pode ser útil e reproduzido em produtos ou soluções. Um exemplo é o velcro. Ele foi criado por George de Mestral, após estudar como os carrapichos ficavam grudados nos pelos de cachorros. Ao ver a semente pelo microscópio, o engenheiro notou que ela era dotada de filamentos entrelaçados e com pequenos ganchos nas pontas. E assim surgiu a ideia para desenvolver um processo que funcionava do mesmo modo.

Hoje a metodologia da biomimética, que nasceu como ciência, está presente em inúmeras outras áreas, como medicina, arquitetura, engenharia, aeronáutica, design, mobilidade urbana, geração de energia limpa e até em setores sociais, econômicos e de gestão. Atualmente seu método é chamado de Biomimicry Thinking, que propõe um novo olhar para conduzir projetos, buscando soluções surpreendentes, inovadoras e conscientes.

O caminho para a regeneração
“A capacidade de examinar o rio do tempo nos dá uma opção: seguir pela correnteza tal como sempre fizemos, ou entrar no remanso e aprender um caminho melhor.”, escreve Janine Benyus em seu livro “Biomimética: inovação inspirada pela natureza”.

A biomimética nos dá a chance de seguir pelo remanso, aprendendo com a natureza como ser sustentável e regenerativo do início ao fim, conforme ocorre com todos os processos e sistemas naturais. Estudar como a natureza encontrou soluções e entender seus princípios de funcionamento podem ajudar a humanidade a evoluir para tecnologias que consomem menos energia, reduzem o uso de materiais, reciclam resíduos e trabalham de maneira sistêmica, regenerativa e circular ao invés de destrutiva para criar condições propícias para a vida.

A biomimética mostra que não basta sermos apenas sustentáveis. É importante e urgente que também sejamos regeneradores. Aliás, essa é uma das 11 tendências empresariais do nosso estudo. A biomimética aponta alguns caminhos para se levar à prática da regeneração, como a inovação em tecnologias verdes disruptivas – um subtema destacado no estudo. São tecnologias que provocam uma ruptura com os padrões já estabelecidos no mercado. Trata-se de algo inédito, original e transformador. Uma esperança para um futuro mais promissor para nós e o nosso planeta.

Um bom exemplo do uso da biomimética com foco em regeneração é a Boskalis. A empresa – que é fornecedora global de serviços de dragagem e marítimo – fez um projeto chamado ReefVival, em parceria com a Prince Albert II Foundation e a Monaco Association for Nature Preservation (AMPN). A companhia criou estruturas artificiais semelhantes a recifes de corais por meio de impressão em 3D, feita a partir de carbonato de cálcio, uma fonte vital de vida para uma variedade de ecossistemas marinhos. Elas foram implantadas em Larvotto, em Mônaco. Os corais, tão importantes para o equilíbrio do meio ambiente aquático, estavam sendo ameaçados pelo aquecimento global. O projeto foi um sucesso. O monitoramento, feito por pesquisadores da University of Nice Sophia Antipolis, mostrou que os recifes artificiais ficaram completamente cobertos de vegetação e habitados por uma variedade de peixes, lagostas e outros animais marinhos. Aquele ambiente foi totalmente regenerado. Veja o vídeo clicando na imagem abaixo.

Aqui no Brasil também tem bons exemplos, como é o caso da startup ÁguaV. A empresa foi pioneira no desenvolvimento de uma tecnologia inovadora de infraestrutura verde, as chamadas floating islands. São ilhas artificiais flutuantes construídas com o reaproveitamento de materiais descartados. Nelas são plantadas espécies nativas ornamentais a fim de tratar, purificar e regenerar corpos d’água contaminados por esgoto doméstico ou industrial. Isso gera impactos positivos em lagos, rios, canais, córregos urbanos, sistemas de drenagem pluviais e saídas de esgoto. Essas ilhas flutuantes trazem benefícios não só para o meio ambiente, como também para as comunidades próximas, para o microclima local, além da revitalização de espaços públicos que contribuem para a conscientização ambiental.

Combatendo as mudanças climáticas

A Nucleário criou um dispositivo para plantio de mudas com design inspirado nas bromélias e na serrapilheira. Crédito: Nucleário/divulgação.

Outra grande tendência de sustentabilidade do nosso estudo que se relaciona com a biomimética é o combate às mudanças climáticas. A própria natureza mostra caminhos para reverter o aquecimento global. Quem viu essa oportunidade preciosa foi a startup brasileira Nucleário, acelerada pelo Braskem Labs. Ela desenvolveu um dispositivo para plantio de mudas em larga escala com design inspirado nas bromélias (que acumulam água entre as folhas) e na serrapilheira (camada de folhas e galhos secos que se forma no solo sob as árvores e mantém os nutrientes e a umidade do solo). O projeto fez tanto sucesso que a Nucleário ganhou em 2018 o Ray of Hope, concedido pelo Biomimicry Institute, que premia soluções inovadoras para mitigar mudanças climáticas.

Os projetos de arquitetura biomimética também colaboram para o combate às mudanças climáticas, principalmente aquelas que focam na redução de gasto de energia. Os projetos são desenvolvidos a partir da análise de estruturas naturais. Há quatro ótimos exemplos.

Na África, a multinacional ARUP construiu um shopping center, o Eastgate Centre, em Harare, no Zimbábue, com sistema de ventilação inspirado em cupinzeiros, que utiliza até 10% menos energia, evitando assim o uso de ar condicionado. A Torre Gherkin, localizada em Londres (Inglaterra), foi construída imitando o sistema respiratório das esponjas marinhas e das anêmonas-do-mar, contando com uma engrenagem de ventilação inteligente, que fornece ar para toda a torre de maneira eficiente, economizando até 50% de energia comparada com torres de escritórios de dimensões similares. Mais um exemplo é a Casa BIQ, um edifício em Hamburgo (Alemanha), cuja fachada incorpora muitas algas microscópicas que vivem e crescem no interior. Esses organismos controlam a luz que penetra e obtêm nutrientes e dióxido de carbono através de um circuito de água integrado no edifício para possibilitar a fotossíntese. Após este processo, elas são coletadas e transformadas em biomassa, produzindo biogás que brinda energia ao prédio e reduz o consumo de eletricidade em 50%. No Brasil o exemplo é Votu Hotel, construído pela GCP Arquitetura e Urbanismo, na Praia dos Algodões, na Península de Maraú, Bahia. O edifício tem auto-sombreamento baseado na capacidade de alguns tipos de cactos. Sua ventilação é natural, com conforto térmico, inspirada em tocas feitas pelo cão-da-pradaria, que costuma fazer entradas e saídas de ar dinâmicas nas áreas escavadas. Já a cozinha tem um sistema de troca de calor com o ambiente externo que lembra o resfriamento feito pelo bico dos tucanos. Essas soluções evitaram gastos de energia com climatizadores.

A gestão bioinspiradas de pessoas

A gestão bioinspirada olha os princípios pelos quais a natureza funciona e traz essa lógica para dentro da empresa e para o mercado,
como as colônias de formigas. Crédito: Pixabay/Monsterpong.

A Biomimética também entra em outros setores que não são necessariamente focados em produtos, como as áreas de sociais e de gestão. É a chamada gestão bioinspirada. Ela rompe o modelo tradicional da gestão mecânica, que parte do princípio de que o mundo e as empresas são máquinas controláveis, olhando o humano como um recurso, um insumo e não como ser humano.

O conceito de gestão bioinspirada é exatamente o oposto. Ela trata o ser humano como humano e não como recurso. É exatamente o que fala a segunda das 11 Tendências de Sustentabilidade Empresarial No “Outro Normal”. Para colocar isso em prática, a gestão bioinspirada olha os princípios pelos quais a natureza funciona e traz a lógica desses princípios para dentro da organização e para o mercado. Funciona como sistemas vivos, ecossistemas complexos, buscando na inteligência da natureza inspirações para trabalhar competências e resolver problemas no dia a dia corporativo. É uma forma mais fluida e orgânica, em que as pessoas trabalham com mais autonomia, com espaços colaborativos, criativos e com diversidade de idades, etnias, gêneros, religiões e culturas. A monocultura não tem vez e é vista e pode se tornar um fracasso. Se surgir uma praga (um problema), pode devastar tudo. Já, se a empresa é multicultural, a gama de soluções tende a ser maior. E o envolvimento de todos e todas é fundamental: desde a diretoria até a moça que serve o cafezinho. Todo trabalho é igualmente importante.

Os valores que direcionam modelos de negócios inovadores bioinspiradores podem ser os mesmos que a natureza usa há milhões de anos em seus processos, como resiliência, colaboração, descentralização e eficiência.

Tudo isso parece impossível, mas não é. Um exemplo é a empresa gaúcha Dobra, que fabrica carteiras, mochilas e tênis. Funciona sem hierarquia e a partir de conceitos open source. Outro é o Aflora, um espaço multipropósito em São Paulo que une coworking, eventos, restaurante e terapias holísticas. É uma comunidade de empresas que focam em curar o planeta.

Outros cases inspirados na natureza

O design do trem-bala japonês foi inspirado no voo do martim-pescador.
Crédito: Pixabay/ Pexels e Bairi

Sabia que até a poluição sonora pode ser minimizada com a biomimética? Foi o que aconteceu no Japão. Para diminuir o barulho ensurdecedor do trem-bala, engenheiros encontraram uma solução inspirada no voo do martim-pescador. O pássaro mergulha em alta velocidade para apanhar comida quase sem fazer barulho e nem espirrar água. O bico consegue furar a resistência do ar.

Outro exemplo bacana é o que a empresa europeia Sto fez ao criar uma tinta autolimpante inspirada nas asas da Morpho, a borboleta-seda-azul. Os pesquisadores da companhia desenvolveram um sistema com materiais que recobrem a tinta, impedindo que a água e a sujeira grudem na superfície. Essa camada protetora evita também que fungos e algas se desenvolvam na parede. É o mesmo principio autolimpante do inseto, que tem a combinação da superfície das suas asas com propriedades das moléculas de água que impede a aderência de sujidades.

Há fãs da biomimética que dizem que até o desabastecimento global de água poderia ser resolvido com a metodologia. A solução poderia vir de um besouro da Namíbia. O inseto possui uma casca dura, com estruturas similares a sulcos capazes de capturar e condensar a umidade do ar, transformando-a em água potável, que escoa até a boca do bicho. Já pensou aplicar uma técnica parecida com essa em regiões áridas? A Universidade Nacional de Tecnologia de Seul, na Coréia do Sul, está estudando esse assunto e já desenvolveu uma garrafa a partir desse processo.

Quer conhecer mais iniciativas baseadas na biomimética? Consulte a plataforma Ask Nature, mantida pelo Biomimicry Institute. O portal funciona como uma espécie de catálogo on-line com soluções que nos mostram o quanto temos a aprender com a natureza para solucionar os desafios da nossa sociedade.

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