Rigoberta Menchú

Rigoberta Menchú

Uma indígena guatemalteca que encarou a infância difícil nas plantações de café – onde viu amigos e irmãos morrerem –, uma guerra civil e o assassinato do pai. Ao invés de calar-se diante das atrocidades cometidas diante de seus olhos, ela fez exatamente o contrário – levou sua história e a voz de sua comunidade para o mundo.

Rigoberta Menchú, personalidade mais conhecida do grupo étnico Quiché-Maia, tem estado presente na luta pelos direitos humanos há décadas. Durante a Guerra Civil da Guatemala – entre 1960 e 1996 –, participou de manifestações contra o regime vigente que a levaram ao exílio no México, em 1981. No mesmo ano, seu pai era assassinado na embaixada espanhola de seu país. Terminada a guerra, fez de tudo para que políticos e militares envolvidos no genocídio contra o seu povo fossem condenados.

“Esse desastre tocou a consciência de milhões de pessoas e levantou a discussão sobre as condições dramáticas na Guatemala – que até pareciam ficção. Felizmente, com a luta de muitas pessoas, foi possível demonstrar que aquela era a realidade e não um filme”, contou Rigoberta durante o Fórum de Sustentabilidade do festival Starts With You (SWU).

No início da década de noventa, a ativista participou da elaboração da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1992, por seu histórico de luta e empenho na defesa desses povos, conquistou o Prêmio Nobel da Paz. Além do importante reconhecimento, também já foi Embaixadora da Boa Vontade da UNESCO.

A descendente da antiga civilização Maia – notória por seus feitos nas artes, arquitetura, matemática e astronomia – viu na luta pelos direitos humanos, especialmente em favor dos povos indígenas, uma forma de tornar sua vida útil à humanidade, como prega sua cultura milenar. Pragmática por natureza e aprendizado, candidatou-se à presidência da Guatemala, em 2006. Não ganhou, mas levou do pleito uma nova lição de vida – a mesma que tenta escrever por todos os caminhos por onde passa.

Nesses anos de atuação política e humanitária, jamais deixou de lado o clamor pelo cuidado com a natureza e a justiça social para as mulheres. De sua relação com o planeta, Rigoberta tira um estímulo e a conclusão por estarmos no atual estágio de degradação ambiental, social e espiritual – o afastamento do ser humano de suas raízes, sua origem. Confira a seguir as reflexões sobre essas e outras questões que permeiam a trajetória de vida de Rigoberta Menchú.

Sinergia com a fonte da vida

Tenho me engajado em causas humanitárias primeiramente por meio da defesa dos princípios universais dos povos indígenas, das civilizações ancestrais, das culturas milenares – aquelas que concebem uma relação diferente com o planeta. Nessas culturas, a Terra é considerada nossa mãe, o útero onde nos formamos, no qual crescemos. Não se trata de uma relação comercial. Há uma grande diferença entre enxergar o mundo de um ponto de vista comercial e vê-lo sob a ótica da produção de vida, da própria vida do planeta.

Há muitos anos, entendi a questão da violência como reflexo e parte de um sistema global em decadência. Os Maias dizem que esse tempo é “um tempo”. Todos temos agendas diferentes e poucas vezes elas coincidem em uma agenda comum. Por isso busco partilhar ideias com todas as pessoas que desejam uma qualidade de vida melhor para o planeta, que desejam mudar em tempo o rumo da humanidade para um futuro melhor.

Há também uma decadência espiritual, relacionada a graves crises institucionais. A transcendência de cada indivíduo é o que torna possível uma profunda consciência humana e a transformação do todo. Atualmente, as pessoas não sabem viver. Estamos angustiados por desejar crer em algo, e arrependidos por termos acreditado em um sistema falho.

Há também uma decadência material. O materialismo se dá a partir da extração de elementos da Terra – compramos sem ter nenhuma ideia de que a essência desse consumismo nos leva à nossa própria decadência. Sim, preciso de dinheiro para poder realizar minhas obras. Sabemos que o dinheiro manda, hoje. Mas devemos saber usá-lo com decência, usá-lo bem, para que seja um meio de transformação e não apenas de ostentação. Na essência do materialismo há um problema profundo, que não podemos transformar se não tivermos outra visão de mundo.

Por fim, enfrentamos uma decadência social grave e também profunda. E quem tem o poder da mudança são os jovens. Isso também implica a questão do tempo. Os Maias observaram muito as luas, a Terra, a passagem – acreditamos que uma nova era está por vir para retomar e gerar a harmonia energética.

Por muitos anos venho falando sobre a necessidade de rever e mudar nossa relação com a Terra. Nós, os Maias, somos muito ligados a ela. Mas o ocidente tem uma relação de asco porque sabe que a estamos contaminando. Então, precisa-se repensar a prática de vida. Somos produto de uma sinergia cósmica do universo com o planeta. O calendário Maia é um matemático do tempo, filosófico, que anuncia novas eras de vida, de construção, de equilíbrio. E, sobretudo, anuncia que o ser humano deve retornar à sua consciência original.

Hermanos indígenas

A família é a instituição mais sagrada da humanidade porque, como seres humanos, somos complementares. Obviamente, isso também diz respeito à comunidade. Creio que, hoje, há muita desintegração familiar, muitos jovens sem família, mães solteiras – e tudo isso gera um vazio na sociedade e no que há de mais íntimo nas pessoas.

Em primeiro lugar precisa-se fortalecer a família, as comunidades e, consequentemente, suas lideranças – porque essas, quando desvinculadas da comunidade, correm o risco de transformar a relação entre ambas em algo estéril. Por isso convido as comunidades a tomar parte nas decisões, a participar na transformação do mundo no lugar que desejamos viver. Posso ser o construtor do meu próprio destino, mas, para tanto, preciso participar de uma luta integrada.

Os irmãos indígenas e povos originários do Brasil, infelizmente, não têm tido apoio do governo brasileiro durante muitos anos – os governantes não compreenderam a importância de uma relação próxima com essas culturas ancestrais. É uma lástima para o país – o que mais tem lutado contra os tratados internacionais pelos direitos desses povos. Podemos dialogar. Convido-os a dar valor às culturas ancestrais e a proteger a natureza, um patrimônio de todos.

Não se deve pensar que a implantação da usina de Belo Monte afeta muitos indígenas – e sim que afetará muitos brasileiros, a humanidade, a vida em geral. Resumindo, essa é uma relação comercial, acima da racionalidade, da vida natural. Então chamo a atenção para que não se cometa esse genocídio. Que as pessoas denunciem e defendam o que precisam defender. Às vezes podemos pensar que apenas uma ação não faz diferença; mas precisamos dela. Os indivíduos devem estar cientes de que os políticos não são donos de nada, muito menos do planeta.

Um plano em prática

Felizmente, tive a sorte de nascer na Guatemala, onde possuímos o sagrado calendário Maia. Ele é matemático como qualquer outro, porém, cada dia tem um significado e uma relação com o cosmos.

Esse calendário ajudou-me a levar uma forma de vida na qual não se pode ser uma pessoa dedicada apenas a uma teoria sem colocá-la em prática.

E esse é um dos grandes problemas da humanidade. Temos estatísticas, mas não colocamos um plano em prática. Temos grandes conteúdos, conceitos, mas não os colocamos em prática. Apenas quando se faz algo surge a noção do tamanho da mudança, que implica uma transformação total de nossa vida.

Ouvimos constantemente empresas de energia falando sobre petróleo, países firmando compromissos para defender o planeta, políticos prometendo e não cumprindo. Se a sociedade não luta, pressiona, não fala e se engaja para enfrentar desafios, nos tornamos cúmplices silenciosos de uma mentira. Todos juntos podemos fazer a diferença.

Os jovens devem aderir à causa, assim poderemos ser sócios por um futuro melhor. Quero estimulá-los a serem criativos. E não há criatividade quando não se participa de um processo. É preciso colocar em prática aquilo que se aprende, não importa a profissão. Todos somos seres humanos e queremos uma qualidade de vida humana, uma educação para a vida. Sobre as coisas das quais não gostamos, precisamos entendê-las. A educação formal não vale nada quando não é aplicada na prática.

Fui candidata à presidência nas últimas eleições da Guatemala, um pleito muito difícil e disputado. Apesar de não tê-lo ganho, sinto-me orgulhosa por ter participado, como mulher, com grande experiência política. Entretanto, é muito diferente participar da vida política de um país sem a “responsabilidade” do que se faz – diferente de uma candidatura na qual precisa-se pensar e defender um plano de governo realista, que não pode ser enganoso para as pessoas e nem gerar fantasias de desenvolvimento – sobretudo porque a economia de nossos países está em colapso. Então, se quero melhorar hospitais, por exemplo, mas não tenho recursos, preciso fazer uma reforma tributária, criar um imposto.

Rio+20

Em relação à Rio +20, primeiramente acredito que qualquer coisa que não contemple a sustentabilidade não será boa. Aos povos indígenas prometeu-se mais de uma vez mudanças não realizadas. Em segundo lugar, os bens naturais desses povos são bens da humanidade. E creio que as políticas devam levar em conta as propostas das comunidades de forma menos elitista – não ditadas pelas elites nacionais ou transnacionais.

Temos uma causa em comum, que é alcançar uma vida melhor, uma plenitude, que significa não somente viver por viver, mas sim ter uma vida útil, como diriam os Maias – plena no que mais gostamos de fazer. Vejo o futuro pelas lentes da realidade. Há sofrimento e felicidade. Muitas vezes queremos alcançar a perfeição. Mas não há nada mais perfeito do que aquilo que temos, fazemos e pelo qual podemos agradecer todos os dias – isso é tão perfeito quanto o que o ato de pedir perdão quando não fazemos bem.

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