A ousadia dos relatórios online

13 de maio de 2008

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Em qualquer lista isenta que se faça sobre empresas socioambientalmente responsáveis, a Natura é sempre uma lembrança líquida e certa. Esta é uma condição que não se atinge –vale destacar — da noite para o dia nem por acaso, principalmente não tendo gasto fortunas em propaganda. Chega-se a ela fazendo o que precisa ser feito, com atitude e coerência. E apenas quem, de alguma forma, construiu uma história.
Ao contrário de outras companhias, que foram criadas no paradigma da ética do lucro acima de todas as coisas e depois incorporaram práticas socioambientais, a Natura nasceu na década de 1970 já preocupada com questões pouco comuns ao universo empresarial, como relações humanas, preservação do meio ambiente, transparência e co-responsabilidade pelo desenvolvimento de comunidades –fruto da crença pessoal de seus fundadores e da inspiração de modelos igualmente baseados na noção de interdependência e pensamento holístico, como o da também fabricante de cosméticos The Body Shop, da ativista Anita Rodick. Seu exemplo influenciou muitas outras companhias. O culto a valores sustentáveis, presente nos genes da cultura organizacional, explica porque a Natura foi pioneira em quase tudo o que fez nesse campo, do manejo responsável de matérias-primas ao uso equilibrado da biodiversidade na composição de produtos, da adesão à proposta de balanços sociais do Global Report Initiative (GRI) à tabela ambiental nos rótulos de sabonetes, perfumes e cremes.
Os resultados econômico-financeiros da Natura ficaram abaixo do previsto em 2007. E o mercado logo tratou o caso como uma crise. Houve quem, diante do fato, insinuasse que a empresa dedicou tempo demais à bandeira da sustentabilidade, esquecendo-se de cuidar dos fundamentos do negócio. A fase de vacas magras que se estendeu por mais de um ano após a abertura do capital parece, no entanto, não ter abalado a confiança em seus preceitos. Após um período de reclusão dedicado à “arrumar a casa” –durante o qual, aliás, pouco falou sobre suas ações sustentáveis — a Natura vai aos poucos retornando à cena com idéias provocativas que prometem fazer barulho.
Uma delas foi apresentada na semana passada, durante a Conferência Global de Transparência e Sustentabilidade –realizada em Amsterdã, na Holanda. Na ocasião, o seu presidente, Alessandro Carlucci, anunciou que a empresa pretende lançar um portal na Internet para comunicar seus compromissos, ações e práticas sustentáveis. Até aí, nenhuma novidade. A diferença é que, em vez de inserir nele, uma versão eletrônica do seu relatório de atividades para download, prática hoje relativamente comum entre as corporações, a Natura quer criar um espaço mais participativo que estimule a interação dos diferentes públicos envolvidos com a companhia.
O projeto ainda não tem um formato definido. Mas já vem sendo chamado provisoriamente de Wikiporting, em referência ao famoso Wikipédia. Como o portal que abriga a enciclopédia livre da Internet, o da Natura propõe, na prática, que o seu relatório seja escrito e reescrito permanentemente com a colaboração de funcionários, acionistas, fornecedores, clientes, parceiros e até investidores. A tese que fundamenta a proposta é a mesma já defendida nesta coluna: os relatórios de atividades socioambientais precisam ser mais dinâmicos, mais efetivos como instrumento de comunicação e, principalmente, mais permeáveis à colaboração das partes interessadas, até porque nenhuma empresa é proprietária exclusiva dos dados nele contidos, na medida em que esses tratam –ou deveriam tratar –de impactos gerados para pessoas e comunidades.
Basta uma leitura rápida nos relatórios hoje disponíveis no mercado para perceber que neles ainda falta a voz de pessoas e comunidades –mesmo nos mais bem feitos e criteriosos, que utilizam modelos consagrados como o do GRI. A despeito dos cuidados gráficos e metodológicos, em sua maioria eles ainda constituem meros relatos de feitos e realizações, intencionalmente positivos, estruturados em discurso unilateral, vagos e econômicos na auto-crítica, como se as empresas que o assinam já tivessem atingido o nirvana da sustentabilidade. Raros são também os que têm os seus dados socioambientais–não os financeiros – auditados por empresas externas.
A proposta da Natura consiste, portanto, em incorporar a voz dos públicos estratégicos no seu relatório socioambiental, substituindo o texto técnico e impermeável, que encorpa as páginas impressas, por uma espécie de obra online em aberto, sujeita às colaborações de terceiros, tarefa a que a Internet, graças ao seu potencial de comunicação de mão-dupla, presta-se como nenhum outro meio. O problema a ser administrado é que essa voz pode não ser exatamente de concordância, elogiosa ou condescendente, até porque, longe de ser linear, qualquer processo de implementação da sustentabilidade enfrenta impasses e contradições. Críticas a comportamentos e atitudes vão surgir. Dissonâncias serão uma constante em qualquer processo de diálogo franco e democrático. Uma coisa é certa: se vier mesmo a ser lançado, o portal Wikkiporting, além de revolucionar o modo de comunicar ações sustentáveis, será um ato de coragem e de apego à transparência. Resta perguntar: quantas empresas hoje no Brasil estariam dispostas a se expor desse modo?
Artigo publicado no Jornal Gazeta Mercatil em 13/05/2008.

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