Quando desembarcou em Lesoto, no extremo sul da África, no início deste ano, para um trabalho com o grupo Palhaços sem Fronteiras, a atriz e educadora Daniela Biancardi,32 anos, levou um choque. O que viu era mais triste e penoso do que podia imaginar. O grupo cumpria mais uma de suas muitas ações pelo mundo para levar alegria e, talvez, esperança, a crianças e jovens habitantes de localidades miseráveis – no caso de Lesoto, a missão era apresentar shows cômicos para crianças portadoras do vírus HIV.
De nada adiantou o longo preparo com que Daniela pretendia se fortalecer para enfrentar uma situação que, sabia, seria difícil. Numa espécie de aquecimento, meses antes de partir fez terapia, leu tudo o que pôde sobre os lugares que visitaria, e treinou seu desempenho como atriz e professora. Em vão. O choque dos primeiros contatos na África mostrou que a preparação ajuda, mas a vivência é quem dá as cartas. Diante da crua realidade das crianças africanas Daniela engoliu seco e apelou para o que sabe fazer de melhor: sorrir. “Não era fácil para mim, mas também não era fácil para aquelas crianças. Então, pensei, vamos encontrar uma maneira de brincarmos e rirmos juntos e isso vai trazer alegria para mim e para eles”, conta.
Durante o período que passou na África – entre fevereiro a abril – Daniela exercitou diariamente o desafio de provocar o riso em localidades onde o sofrimento é parte da rotina diária. Foram dezenas de vilas e aldeias atendidas em 50 dias na África do Sul e em Lesoto. Lugares de árida beleza, muitos ainda primitivos, aonde só se chega por estradas de terra batida com veiculo de tração ou a cavalo. Um dos episódios mais marcantes para Daniela foi percorrer o trajeto entre a aldeia de Semonkong, onde fica a catarata de Matsulanyane, uma das mais famosas da África com seus 204 metros de queda d´água, até …….. “Foram cinco dias de viagem a cavalo, compensados pela paisagem, que é maravilhosa”, recorda.
Segundo ela, as apresentações aconteciam “onde dava”: em escolas, hospitais, orfanatos, centros sociais, capelas ou na própria casa de um chefe de aldeia. No total, o grupo se exibiu para cerca de 15 mil crianças. “Muitas são órfãs, filhos de pais que morreram de AIDS; os que têm família ajudam os pais na colheita do milho ou a pastorar. Poucos freqüentam a escola e, ainda assim, em condições precárias. Vi muita criança tendo aula em condições desumanas, onde um pedaço de carvão é utilizado como giz”, relata. Para fazer rir uma criança nessas condições Daniela tem um método próprio: “tento, antes, me colocar no lugar dela e entender as razões que a levam a sorrir.
Mesmo não tendo absolutamente nada elas são alegres, isso é para ser celebrado”, observa. Houve uma única exceção, num orfanato em Lesoto onde os palhaços se apresentaram na capela, o único lugar com espaço para abrigar as 25 crianças que chegaram “silenciosas e com um olhar muito triste”. Durante todo o espetáculo nenhuma sorriu. Daniela se emociona ao lembrar: “naquele salão havia somente uma cruz, um quadro retratando o mito da criação com Adão e Eva e aquelas crianças tristes, sem pai nem mãe. Olhei para meu colega do show e perguntei: o que vamos fazer?”
Contudo, nem situações como essa, nem mesmo a dificuldade do idioma – em Lesoto fala-se o Seshoto, um dialeto local, da família das línguas Bantu – esmoreceram seu ânimo e sua intenção de levar alegria às crianças africanas. Para se fazer entender, Daniela lançou mão da mímica e de gestos cômicos – o corpo como expressão artística, uma linguagem muito utilizada pelos Palhaços sem Fronteira, que levam sua arte aos quatro cantos do mundo. Na verdade, para comunicar-se com os africanos, bastava apresentar-se como brasileira. Única entre os Palhaços de origem não irlandesa, Daniela surpreendeu-se com o conhecimento local sobre o Brasil e sua cultura.
“Parece que todos, na África, sabem o que é o Brasil. Os líderes dos lugares onde estivemos conhecem o idioma, a história do país e mencionam sempre o fato de o Brasil ter uma grande população negra”, conta, lembrando uma situação engraçada em que usou o famoso “jeitinho brasileiro” para cruzar a fronteira entre o Lesoto e a África do Sul. Foi logo na chegada a Lesoto, “tarde da noite e com forme”. Os Palhaços souberam que havia um restaurante 24 horas logo após a divisa entre os dois países, do lado da África do Sul.
Com um visto de permanência (com direito a 90 dias em Lesoto), Daniela foi barrada por uma funcionária da imigração e soube que, se saísse, não poderia voltar. “Mas eu só vou jantar” disse Daniela, usando os trejeitos de palhaça. A mulher achou graça e foi a deixa para que ela e o grupo improvisassem um show de mágica em que bilhetes de autorização (dos demais palhaços) saiam de uma orelha e apareciam na outra da funcionária. Resultado, os Palhaços jantaram e voltaram em paz para Lesoto, sem deixar nenhum para trás.
Envolver o público em suas “artimanhas” é um exercício levado muito a sério por Daniela. Ela gosta, por exemplo, de conversar com o público antes da apresentação e se deixar ver sem a maquiagem e o figurino. “Principalmente para as crianças da África, que nunca viram antes um palhaço ou um instrumento musical como o violino e o trompete, é importante constatar que há um ser humano por trás da fantasia”, observa. Por trás da fantasia ou da ação cômica, há também uma mensagem subentendida sobre os direitos humanos. Na África, que tem um histórico de diferentes níveis de violência, por exemplo, todo o trabalho de Daniela foi orientado para questões como o papel da mulher na sociedade e a impotência das crianças diante da AIDS. “É uma preocupação dos Palhaços sem Fronteira com o ser político e não com a política”, ressalta Daniela, citando o filósofo grego Aristóteles para lembrar que não há como o homem fugir de sua natureza política. “Somos todos políticos, o palhaço também tem que ser”, brinca.
Bom-humor, nariz de palhaço e muito talento
Daniela conheceu os Palhaços sem Fronteira, uma organização não-governamental com escritórios nos Estados Unidos, na França e na Espanha, por intermédio de um amigo da Irlanda, que já havia viajado com o grupo em várias ocasiões. Com a missão de levar um grupo de palhaços à África, o amigo, Jonathas, convidou Daniela, que aceitou o desafio. “Só tive que levar meu bom-humor e o nariz de palhaço”, lembra. Experiência, ela tinha de sobra. Atriz por formação, Daniela carrega um currículo recheado de passagens internacionais. A escolha pela profissão aconteceu aos 15 anos, logo após a perda prematura do pai que “deixou a família desnorteada”. O que lhe deu ânimo para reagir foi a apresentação de um grupo de teatro formado por amigos de uma escola de Campo Limpo Paulista, cidade do interior de São Paulo próxima à Jundiaí, onde morava.
Gostou tanto que passou a viajar diariamente de uma cidade a outra para aprender a arte de representar. “Me dei bem”, brinca, “as aulas melhoraram minha expressão e o diálogo com outras pessoas, ampliaram minha noção de coletividade e me ajudaram a desenvolver a criatividade”, diz. Com a evolução do grupo, o professor aconselhou aos artistas-amadores que buscassem na capital o aperfeiçoamento e a experiência necessários à formação de atores. Daniela não pensou duas vezes. Em São Paulo, formou-se no Teatro-Escola Célia-Helena e encontrou o espaço que precisava para decolar na carreira. “O teatro é uma forma de canalizar minha energia – nasci no dia de Santo Antônio (12 de junho), o casamenteiro e, desde menina, sou inquieta, pipoca na panela mesmo”, diz.
Método inovador foi “abre-portas” na profissão
A palhaça que vive em Daniela, porém, só aflorou mais tarde, durante a faculdade, quando participou de workshops, oficinas de clown – “palhaço” em inglês, palavra usada no Brasil para distinguir o palhaço que realiza performances no palco – e se envolveu mais e mais com a pesquisa do gênero teatral. O interesse e o talento que demonstrava resultaram em uma indicação para a École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, em Paris, onde estudou, em 1999. A instituição francesa direcionou o aprendizado de Daniela exatamente para a área que desejava atuar e, depois de um ano, ela se reuniu com um grupo de educadores da escola, que planejava expandir e reformular a metodologia original e voou para a Itália, onde se familiarizou com o estudo das máscaras teatrais, em Pádua, continuando sua especialização. “A palhaça que carrego dentro de mim surgiu na própria escola Estou sempre muito próxima da comédia. O palhaço é cômico, mas muitas vezes é trágico e poético também”, pondera.
Na Europa, trabalhou ainda como produtora, professora e, é claro, atriz. Por meio de amigos que conheceu na escola, levou o resultado de seus estudos para a Irlanda, Inglaterra e Escócia. Acumulou experiência profissional, fluência em três idiomas (inglês, francês e italiano) e muita vontade de atuar no Brasil. Em 2002, voltou para São Paulo. Aqui, seu “abre-portas” foi a metodologia inovadora da Jacques Lecoq, que permite ao ator transitar em diferentes áreas do universo cênico. “É uma realização conseguir tocar os outros com o que eu faço e receber algo em troca. Não é um trabalho em que somente eu dôo, é uma troca de saberes”, afirma.
Daniela só lamenta que, em 15 anos de profissão ainda tenha dificuldade em se manter somente com o trabalho de atriz. Para ela, falta, principalmente, uma visão da sociedade e do Estado em relação aos profissionais da arte. “Sentimo-nos também na fronteira, no sentido em que sei de todas as estruturas que preciso e, ainda assim, falta estrutura. Estamos sempre no limite, sempre no osso, como diz o meu avô”, critica.
Alegria arraigada na alma
Apesar de tudo, Daniela Biancardi não perde o ânimo e tem muitos, muitos planos. Quer continuar a estudar teatro, aprender a fazer mágica e a tocar instrumentos musicais. Ela – que se diz “intensa” em tudo o que faz – , justifica o entusiasmo: “Para mim teatro ainda é encontro e diálogo, e eu vim para o mundo para dialogar, conhecer pessoas. Entender o universo delas e ver se elas entendem o meu também”. Mesmo nas horas vagas, não abandona o espírito artístico. Está sempre explorando a capital paulistana e freqüentando espetáculos, geralmente para apoiar amigos envolvidos.
Tanto quanto atuar, ela gosta de viajar – uma paixão que permite realizar outras, como comer bem e conhecer pessoas e a cultura e a arte locais. No topo da sua lista de destinos, figura a Índia e países do Oriente Médio. Gostaria de “fazer uma ação em Gaza”, de “ser feliz no amor” e de “ter uma varinha de condão para eliminar tudo que não é necessário no mundo”. Gostaria de levar a mãe em uma de suas viagens para “ela ver de perto o que faço”. Ah,sim também de realizar mais projetos em teatro e criar um espaço próprio para atuar em São Paulo. Enquanto planeja,vai seguindo em frente com a alegria, ainda que esta seja a da palhaça que traz consigo, arraigada em sua alma. “Carrego um humor comigo, que é uma boa inversão para quando estou num momento difícil. Sou muito mais amarga quando não estou trabalhando. Mas sou a favor da política do afeto. Amiga, companheira, palhaça. Sou palhaça na vida.”
Em defesa do direito de sorrir
O riso é um direito, não um luxo. Essa é a filosofia da organização da sociedade civil Palhaços sem Fronteiras, fundada em Barcelona, Espanha, em julho de 1993, para levar alegria a zonas de conflitos ou de catástrofes humanitárias, especialmente para crianças e jovens. Seus integrantes – palhaços e artistas circenses – acreditam que trabalhar a psicologia humana auxilia na superação dos momentos difíceis e de crise. Tanto que chegaram a reivindicar, em campanha realizada na Espanha, que o riso fosse declarado Patrimônio da Humanidade, para “não correr o risco de desaparecer”.
Atualmente, com sede também nos Estados Unidos e na França, os Palhaços sem Fronteiras têm como característica manter um financiamento em que a verba pública não supere 50% do total, uma vez que parte essencial de seu trabalho é denunciar as injustiças sociais em todas as partes do mundo. Se mantém ainda, por meio de parcerias e profissionais voluntários, além de doações, eventos e venda de artigos. A PSF afirma não possuir vínculos políticos ou religiosos, porém respeita um código de ética que, entre outros fatores, prega a denúncia, o respeito cultural e o humanismo.