Ponto de Vista – A incorporação da racionalidade administrativa

setembro de 2005

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Pergunta: Qual o papel do investimento social privado no desenvolvimento do País?
Durante mais de 300 anos o Brasil foi colonizado por Portugal que, por sua vez, foi um dos países europeus que atuou como baluarte do catolicismo. A partir de 1543, os registros apontam a criação da Santa Casa de Misericórdia de São Vicente como a primeira entidade criada no país com o objetivo de atender aos desamparados, baseada numa filantropia de solidariedade prevalente na Igreja Católica desde a Idade Média, que se expandiu pelo país à medida que a colonização avançou.
A noção de misericórdia, entendida como uma atitude de piedade e compaixão dos que possuíam recursos para com aqueles menos afortunados, induzia ao entendimento de que, sendo esses o objeto de misericórdia, contribuiriam para a salvação da alma do benfeitor. Como conseqüência, a ação social assume um caráter assistencialista, tornando os necessitados dependentes de seus “benfeitores”. Este modelo de caridade prevaleceu de maneira hegemônica na sociedade brasileira e apenas no último quartil do século 20, que um novo paradigma baseado na idéia de investimento social privado passou a ser desenvolvido.
Durante o regime militar, grupos comunitários, inspirados pela Teologia da Libertação, e em atendimento a uma política de direitos humanos, começaram a apoiar o movimento sindical, além de outros movimentos sociais de diversas origens. Aos poucos, passaram da resistência ao regime militar para ações reivindicatórias de atendimento às necessidades sociais, bem como de caráter democrático. Com o retorno à democracia, em 1985 e, particularmente, com a Constituição de 1988, encontramos as condições para o desenvolvimento de uma sociedade civil menos submissa ao Estado, como ocorria durante a ditadura.
Nesta mesma década, outras iniciativas expressivas surgiram dentro de organizações sociais. Herbert de Souza, o Betinho, que com sua capacidade de mobilização convocou a sociedade e cada brasileiro a participar da Ação da cidadania contra a fome, a miséria e pela vida, despertou o sentimento de solidariedade e voluntariado de maneira marcante e contagiante em todo o território nacional.
Todas essas iniciativas da sociedade civil tiveram uma importante contribuição de empresas e empresários. O fenômeno foi particularmente fortalecido na década de 90, e transformou-se em um movimento em si mesmo, denominado responsabilidade social empresarial, no qual empresas e empresários assumem papéis de agentes transformadores da sociedade, sob uma tríplice responsabilidade em seus negócios: serem economicamente viáveis, ambientalmente sustentáveis e socialmente responsáveis. Na Pesquisa Idis de investimento social na comunidade 2004 ficou claro que estamos próximos de um novo salto: as empresas estão se conscientizando do seu papel de líderes de um processo de transformação, ao fazer a sociedade ser estimulada por suas ações e não mais ao contrário.
Finalmente, para entender a importância do investimento social privado no país é preciso entender que o Estado brasileiro apresenta sérias dificuldades em cumprir com sua responsabilidade para o bem comum. O Estado brasileiro não consegue desempenhar seu papel no que se refere aos direitos do cidadão e em relação aos serviços sociais básicos que necessita, embora esses direitos estejam expressos na Constituição de 1988, onde todos os capítulos sociais se iniciam por um artigo que diz “direito do cidadão, dever do Estado”.
A entrada das empresas e dos empresários incorpora ao setor social a racionalidade administrativa, elemento pouco afeito aos ativistas movidos por ideologias, crenças na solidariedade, e na mobilização social diante de um quadro progressivo de aumento da pobreza e exclusão. A racionalidade administrativa, aliada a um claro entendimento do que é o empreendedorismo, acesso a recursos próprios e busca de resultados e impactos, trouxe ao setor social uma contribuição única. Essa racionalidade permitiu uma verdadeira mudança no paradigma relativo ao uso de recursos privados em benefício público: de assistencialista para um paradigma de transformação social. Um bom exemplo é o investimento social realizado pelas empresas que atualmente utilizam pelo menos quatro modalidades diferentes de critérios relacionados à seleção de projetos, segundo a Pesquisa Idis de investimento social na comunidade 2004. Os novos doadores passaram a se caracterizar como verdadeiros investidores e empreendedores sociais.
O novo paradigma do investimento social é caracterizado pela ênfase em seis aspectos que são: na necessidade do receptor, e não na vontade exclusiva do doador; na busca de ser estratégico, definindo foco de atuação, programas e projetos, e que impactos que procura alcançar com seus recursos; no conhecimento das razões, beneficiários, parceiros, riscos, local, duração e retorno do investimento – não em lucro, mas em benefício social; no uso de ferramentas de planejamento, gestão, controle e avaliação e disseminação dos resultados conseguidos, se possível influenciando políticas públicas; na busca de parceiros estratégicos que possam maximizar seus recursos e diminuir seus riscos e, finalmente, na presença de profissionais para atuar em seus quadros de responsabilidade social, que possuem conhecimento, habilidades e atitudes que permitem efetividade, eficiência, e eficácia em suas ações sociais.
Este novo paradigma de investimento social privado demonstra o quanto a sociedade brasileira progrediu ao assumir que o desenvolvimento social não é somente papel do Estado, como diz o texto constitucional, mas sim uma responsabilidade de todos.
*Marcos Kisil é presidente do Idis – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento

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