Em tempos de desafios complexos como o aquecimento global, valores e atitudes serão tão importantes quanto conhecimento e habilidade. Essa é a opinião de Ricardo Voltolini, diretor de Ideia Sustentável. O especialista destaca o papel das lideranças no processo de transição para uma nova economia, em que teremos que lidar com a equação de produzir mais com menos recursos. Esse desafio traz a tona uma nova realidade corporativa, em que as lideranças não necessariamente ocupam o topo das hierarquias, podendo surgir nas diferentes áreas da organização e até mesmo nas suas bordas a partir de novos padrões de relacionamento. A capacidade de estabelecer o diálogo, gerenciar conflitos e identificar sinergias entre os diferentes públicos com os quais uma organização se relaciona são algumas características desses líderes sustentáveis destacadas por Voltolini. Confira a seguir a entrevista na íntegra com o especialista.
Ideia Sustentável: Quais as principais diferenças entre os líderes do período pós industrialização e dos líderes necessários para comandar a nova economia do mundo pós crise?
Ricardo Voltolini: Está surgindo um mundo novo a partir da crise. Um mundo que caminha claramente para uma “sustentabilização” dos negócios, o que significa que os novos líderes terão um grande desafio: enfrentar a mudança para uma economia de baixo carbono e mexer no famoso tripé da era industrial do extrair, produzir, descartar. Há problemas nos três vértices desse trinômio. Primeiramente o extrair: temos que lidar necessariamente com um mundo no qual há menos recursos. Segundo dados do WWF, estamos assumindo uma dívida com o planeta de 30%, ou seja, tiramos mais recursos do que o planeta é capaz de repor.
Então, os líderes terão que aprender a lidar com um mundo no qual haverá limitações para extração de recursos. A produção terá que considerar a baixa emissão de carbono, será necessário repensar todas as formas de uso de energia e as fontes que estão sendo utilizadas para geração. E em relação ao descarte, teremos que pensar uma economia a partir de produtos que sejam desmontáveis, desmaterializados. Um dos grandes problemas do mundo hoje é o acúmulo de lixo decorrente de um modelo de consumo que a sociedade contemporânea adotou. Então há muitos produtos, muito consumo, um ciclo de vida útil muito curto, o que significa comprar e repor o tempo todo. O novo líder vai viver em um mundo com essas limitações, onde esse trinômio, a era industrial e todo o século 20 construído em cima da energia do petróleo estão em cheque. Haverá mudanças profundas relacionadas a transparência, a gestão responsável, em relação aos cuidados com os públicos impactados pelos negócios. Esse líder terá que aprender a viver e fazer negócios em um mundo de consumidores mais desconfiados, sociedades mais críticas, grupos de pressão mais agressivos e atuantes, governos mais reguladores e fiscalizadores, mercados mais regulados. É um mundo novo. Diria que ele não surge apenas por causa da crise, mas que já vinha sendo construído e a crise foi apenas um fator novo nessa história para crermos que o modelo adotado até então era insustentável.
I.S: Pode-se dizer que esse ciclo que começou na era da industrialização se fechou com a crise financeira mundial?
R.V: É difícil dizer se um ciclo se fechou porque não sabemos se, passada a crise, tudo o que se discutiu no auge do colapso será efetivamente praticado. O fato é que já se vê um governo como o dos Estados Unidos querendo regular drasticamente a atividade empresarial, mirando uma economia de baixo carbono. Onde os EUA colocam a enorme quantidade de recursos que possuem, não só em termos financeiros, mas em tecnologia, capacidade de empreender, as coisas começam a acontecer. Quando olho para o governo Obama hoje e para a sociedade americana do pós-crise, eles estão cada vez mais sintonizados com isso. Os carros poluentes estão sendo substituídos por carros pequenos e elétricos, nem são híbridos mais. Detroit afundou, GM e Ford estão dependendo da boa vontade do governo, e estão surgindo várias empresas novas produzindo carros elétricos de altíssima qualidade e desempenho. É uma tendência. Outra tendência é consumir menos. Como estamos em uma economia globalizada, se americanos e chineses reduzem consumo, impactam o restante do mundo.
I.S: Quais as principais dificuldades que os líderes devem enfrentar para superar esses novos desafios, levando em conta que muitos gestores de empresas tiveram sua formação em uma outra época?
R.V: É interessante destacar algumas características necessárias a esses novos líderes. Em termos de conhecimento, para falarmos na formação desses profissionais, eles terão que compreender a complexidade do sistema e entender que as questões de sustentabilidade decorrentes da consciência de que o planeta tem limites vão impactar toda a cadeia produtiva de uma empresa. Esse líder deverá entender como essas questões interferem em seu negócio e como ele poderá olhar para essas questões a partir de uma ótica de minimização de riscos e potencialização de oportunidades. Até um tempo atrás, olhávamos para essas questões apenas como possíveis riscos. Antes era “eu faço para não perder”, agora é “eu faço para ganhar”, uma visão de oportunidade. Um líder deve estar atento a isso. Ele deverá entender, que algo importante em sustentabilidade é a inovação. Mais do que nunca, um líder deverá facilitar processos de inovação, criar ambientes horizontalizados que facilitem o diálogo, a cooperação, o esforço de veicular boas ideias e transformá-las em produtos e serviços. Ele terá que facilitar um ambiente em que as contribuições em termos de inovação possam vir das pontas, abrir um sistema de canais para que a empresa se torne sensível a perceber o que fornecedores, funcionários, comunidades, clientes e governos desejam que ela faça.
I.S: Podemos afirmar que o líder passou de um papel restrito de comando para a posição de facilitador?
R.V: Essa ideia de comando/controle vai perder espaço para a criação de ambientes mais colaborativos em que as ideias de inovação germinem, e para isso, a empresa precisa ser educada para a cultura de sustentabilidade. Acredito que esse novo líder deverá ter um conhecimento mais profundo de que o sistema econômico depende dos sistemas sociais e ambientais, o que significa claramente uma ideia de oposição às bases da economia clássica no qual o sistema econômico é uma coisa, o ambiental e social, outra. O descarte, que gera problemas ambientais, era tratado como externalidade pela economia clássica, o que mostra bem essa separação – externo a minha atividade, não é minha responsabilidade. Daqui por diante, não será mais possível pensar dessa forma. O líder deverá entender que a empresa, o sistema econômico fazem parte de um sistema maior que inclui o ambiental e o social. Terá também que entender os dilemas atuais que a empresa tem em termos de estratégia de negócio e resolve-los a luz desses novos conhecimentos de sustentabilidade. E deverá ter a disciplina para fazer um modelo de gestão mais flexível que consiga dar conta dessas novas tendências.
I.S:Qual seria o perfil desse novo líder pós moderno?
R.V: Em termos de habilidades, esse profissional deverá ter uma visão ampla e de longo prazo, pensando no tripple bottom line e olhando para o futuro, criando as condições para construir a empresa do futuro hoje: mudando processos de produção, processo de extração, métodos e procedimentos internos que sejam mais ecoeficientes, investindo em pesquisa e desenvolvimento de produtos verdes, conhecendo o que os clientes querem e oferecendo soluções socioambientalmente responsáveis. Isso tudo vai exigir uma sensibilidade muito maior. Ele também deverá saber dialogar, identificar sinergia entre pessoas, negócios, fornecedores, comunidades. Também deve saber escutar e comunicar estratégias. Não adianta ter uma ótima estratégia se você não souber comunicá-la. Um líder também deve saber construir redes de relacionamento, ser uma pessoa sensível, não pode mais ser o chefe de tempos atrás que dá ordens para fazer, cobra e pune se não foi feito. Deve ser alguém que consiga extrair a colaboração a partir de um olhar e de uma capacidade mais mobilizadora. Entre atitudes, deverá ter coragem para romper as barreiras e implementar a mudança, o que não é fácil.
Diria que esse profissional, necessariamente, deve ter pensamento sistêmico (olhar a empresa a partir do todo) algo que não se ensina nas faculdades. Na vida em geral, somos muito induzidos a pensar apenas os “pedaços” e as faculdades de modo geral capacitam especialistas, não tem esse pensamento sistêmico.
I.S: Essa característica de ter um pensamento sistêmico seria a mais difícil para um líder alcançar?
R.V: Sim, pois necessita da mudança de modelos mentais, de reaprendizado. Estamos acostumados a olhar um ponto, não a pensar fora da caixa. Como pensar fora da caixa, esse é o pensamento sistêmico. Esses conhecimentos não estão sendo ensinados em faculdades. As habilidades, algumas ensinam, outras não, mas atitudes e valores, definitivamente não ensinam. E um papel das universidades é começar a trabalhar isso.
Daqui para frente, valores e atitudes serão tão importantes quanto conhecimento e habilidade.
I.S: Alguns estudos apontam que a linha entre quem lidera e quem é liderado está mais abstrata, não se pode definir perfeitamente essa divisão. Isso faz sentido, na medida em que nem todas as pessoas que trabalham em uma organização querem chegar à liderança literalmente – como cientistas e profissionais de tecnologia?
R.V: Experiências mostram o seguinte: quando as empresas começam a trabalhar com sustentabilidade, emergem líderes na empresa que não eram líderes. Então o líder hoje não é quem tem o cargo de chefe. Pode ser uma mulher de um departamento com liderança natural, pode ser um menino da periferia, que é líder de uma comunidade. Nas empresas, o que acontece normalmente é que, quando a empresa facilita a colaboração, cria-se um ambiente colaborativo em torno das questões da sustentabilidade, surgem líderes. Um líder, nesse novo momento, deverá saber formar e educar líderes dentro da sua organização. Identificar essas pessoas ou criar situações para que o espírito de liderança ou potencial se reproduza e floreça.
Haverá uma distância cada vez menor de cargos, o líder poderá estar em vários níveis numa organização. E as pessoas querem cada vez mais líderes íntegros, que sejam mente, consciência e coração.
I.S: O líder que conseguir transmitir esse lado humano, essa compreensão elevada, tende a se destacar?
R.V: Sim, embora haja o status quo de achar que todo profissional que manifesta sua emoção no trabalho é uma pessoa fraca, que não pode comandar. É um modelo mental que foi criado. Isso vai mudar.
As pessoas desejam líderes que olhem nos olhos, que tenham valores, princípios, atitudes. Acredito que esse líder deverá ter uma visão coletivista, muito maior do que a visão individualista, comum a alguns profissionais desse nível.