Menos recall, mais responsabilidade social

Menos recall, mais responsabilidade social

Em 1996, a Nike enfrentou uma monumental crise de imagem depois que  a CNN denunciou ao mundo o uso de trabalho escravo em uma das pontas da cadeia de produção dos seus tênis na Indonésia. Na semana passada, a Mattel, maior fabricante mundial de brinquedos, começou a viver o seu calvário particular ao anunciar um recall de quase 19 milhões de brinquedos aparentemente inofensivos como carrinhos, bonecas e casinhas.
Entre os dois casos, há mais fatores em comum do que a origem das empresas, a popularidade de seus produtos e o prejuízo financeiro, de reputação e de imagem gerado pela desconfiança da opinião pública. Ambas as corporações cometeram o grave descuido de ignorar práticas levianas de seus fornecedores. Em outros tempos, talvez pudessem se apoiar no discurso conveniente de que não devem ser responsabilizadas pelo que acontece nos porões dos seus parceiros de cadeia produtiva, transferindo eventuais culpas para fornecedores desqualificados, sem rosto e sem alma. Hoje não. Há muito menos espaço para a condescendência.
Com a disseminação do conceito de responsabilidade social empresarial na economia globalizada, empresas que não produzem nada em fábricas próprias, botando suas grifes em peças desenhadas, montadas, costuradas e pintadas por terceiros em todo o mundo, são sim responsáveis por tudo o que estampa as suas marcas, da produção ao pós-consumo.
Não basta apenas fiscalizar o que vem de seus fornecedores, reprovando o que não está em conformidade com padrões pré-definidos. É preciso, mais do que isso, ter políticas de seleção de parceiros comerciais, identificar os que compartilham de seus princípios ético, saber em que circunstâncias produzem, como tratam seus empregados, quais as condições de ambiente de trabalho e, principalmente, se, ao  oferecerem preço muito baixo, não estão usando material inadequado, sonegando impostos, explorando mão de obra e cortando custos em itens que podem representar risco de saúde para os consumidores finais.
No episódio dos tênis indonésios, a Nike acabou punida pelo mercado internacional por ter sido displicente em relação a um desvio de conduta ética no fundo do quintal de um fornecedor longínquo, que certamente selecionou pelo preço competitivo.
Descobriu, a duras penas, e com enorme prejuízo, que as sociedades de hoje não aceitam mais tênis com alta tecnologia de redução de impacto mas fabricados por escravos. E que as marcas, por mais fortes que sejam, além de não estarem acima do bem e do mal, devem crer no que crêem e agir como agem os indivíduos decentes.
Foi pensando nessas sociedades, mais críticas e exigentes em relação ao papel de empresas, que a Mattel tomou a atitude preventiva do mega-recall de brinquedos. E o fez para salvaguardar o ativo intangível de imagem porque sabe que, para uma empresa de brinquedos, a contaminação de uma única criança por causa de chumbo demais na tinta do carrinho Sarge assim como imãs fáceis de engolir na linha de bonecas Polly pode ser, na verdade, o começo do fim, um ponto de ruptura no processo de perenização do negócio.
O caso Mattel vem sendo tratado até aqui como um mero deslize de controle de qualidade de importados. Mas para o que interessa a esta coluna, vale enquadrá-lo a partir do que propõem as melhores práticas de responsabilidade social. Indicadores como os do Instituto Ethos e o Global Report Initiative (GRI) abordam o quesito consumidor, mencionando-o respectivamente nas categorias “dimensão social do consumo” e “responsabilidade pelo produto”. Ambos pregam, como práticas ideais, que as empresas conheçam e gerenciem os danos potenciais de seus produtos e que mantenham preocupações com a saúde e segurança do consumidor.
Também sob o ponto de vista da RSE, a Mattel acertou e errou no seu recall. Por mais doloroso que seja tomar esse tipo de iniciativa, a empresa assumiu o erro na venda de produtos com risco para os pequenos consumidores, comunicou sua decisão com alguma agilidade e fez a prevenção necessária para a saúde das crianças e do negócio.
Mas escorregou no atendimento aos clientes, especialmente nos procedimentos de  trocas e ressarcimento. Nenhum pai brasileiro engoliu direito o prazo de 45 dias para a solução do problema, enquanto nos EUA é de apenas um dia.
Fica para a  Mattel a lição de que precisa escolher melhor os seus fornecedores com base em critérios e compromissos mais amplos, não focados exclusivamente em aspectos econômico-financeiros. Para a China, onde estão os principais fornecedores da Mattel, resta uma lição não menos importante: se quiser manter a força global do selo “Made in China”, precisa urgentemente criar regras mais rígidas de controle de qualidade e disseminar conceitos de responsabilidade social empresarial entre as suas corporações.

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