“Livros trazem sustentabilidade para a alma”, diz professor que leva literatura para humanizar o mundo dos negócios

“Livros trazem sustentabilidade para a alma”, diz professor que leva literatura para humanizar o mundo dos negócios

Ivan Ilitch era um juiz respeitado, que só pensava em trabalho. Vivia na superficialidade das aparências e não se importava em cultivar relações verdadeiras. Até o dia em que adoece com gravidade e se vê abandonado por todos – só assim percebe terem sido poucos os momentos da sua existência que possuíam algum significado.

Você deve conhecer pessoas como Ivan. Ou talvez você mesmo já tenha se visto no lugar dele em alguns momentos. Entretanto, veja só: Ivan não existe. Ele foi criado em 1886 e é o personagem de um dos principais livros do russo Leon Tolstói. “Passam-se séculos e os livros clássicos continuam atuais, pois eles traduzem a alma humana, trazem afetos, sentimentos que geram reflexões profundas”, observa o professor Dante Gallian, que criou uma metodologia para levar a literatura para humanizar o ambiente corporativo, o Laboratório de Leitura. O livro “A Morte de Ivan Ilitch”, aliás, é um dos mais usados por ele em seu trabalho.

“A literatura é um recurso promotor do desenvolvimento pessoal que vai além do profissional. É uma possibilidade do conhecimento humano e de auto conhecimento. Quando a gente leva a literatura para as empresas, as pessoas se identificam com os personagens, se empolgam com aquelas situações, debatem o que acontece. Isso gera uma aproximação entre elas, uma descoberta mesmo”.

Gallian é historiador e descobriu este método quando, em 1999, era docente na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e se preocupava com a formação humanística e ética dos profissionais de saúde. Logo percebeu o poder transformador que os livros, especialmente os clássicos, tinham naqueles alunos. O programa deu tão certo que ele fundou sua empresa, a Casa Arca, e passou a ser convidado a levar seu método ao mundo corporativo. Hospital do Coração, Natura, Bradesco, Santander, BB Mapfre são algumas das organizações que já contaram com a consultoria de Gallian. E, como não poderia deixar de ser, ele também é autor de dezenas de livros, com destaque para “A Literatura como Remédio: os Clássicos e a Saúde da Alma”, publicado pela Editora Martin Claret, em 2017.

Casado, pai de 5 filhos, o professor defende que, mesmo em tempos de excessiva digitalização da vida, os livros podem, sim, ser um antídoto para a ansiedade, depressão, burnout e tantas dores que afligem a sociedade. “Basta você dar uma chance a eles”.

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NETZERO: De que forma você acredita que a literatura é capaz de resgatar a essência das pessoas?

DANTE GALLIAN: Todo mundo gosta de ouvir uma boa história – por isso, inclusive, que a gente gosta de uma boa fofoca. Na literatura, especialmente a clássica, as histórias trazem episódios envolventes, afetos, sentimentos. Isso gera reflexões. Descobri isso há cerca de 20 anos, quando cheguei para trabalhar na Faculdade de Medicina da Unifesp e percebi um despreparo dos alunos para lidar com pessoas. A formação era excessivamente técnica. Percebi então que a literatura tinha um efeito muito interessante sobre aqueles alunos. Os livros podiam ser um excelente recurso para trazer aspectos humanos no seu sentido mais integral: dor, expectativas, amor, vida, morte, sofrimento. Questões da existência. Na literatura, descobri uma via de acesso a isso.

E como você chegou ao ambiente corporativo?

Passamos a pesquisar o papel que a literatura pode ter na formação humana, não só na saúde. Aperfeiçoei essa metodologia e comecei a ter uma resposta muito interessante, inclusive na área de negócios. Passei a ser convidado a aplicar esta metodologia em outros territórios fora da universidade, então comecei com a Natura, há 10 anos. O foco era em educação continuada, promoção em saúde emocional e bem estar dos colaboradores. Assim surgiu minha empresa, a Casa Arca, que atua a partir da promoção da responsabilidade humanística e está dentro da pauta ESG, uma vez que parte da experiência de trabalhar pessoas por meio da literatura. Foi assim que desenvolvi o conceito de sustentabilidade da alma.

Como seria isso?

Tem a ver com equilíbrio interno. O ambiente de trabalho é um dos elementos mais detonadores de doenças psíquicas, sabemos. O grande desafio é como transformar este lugar em ambientes promotores de saúde. O que adianta ter colaboradores produtivos, mas que não estão saudáveis nem equilibrados? Tenho visto que a literatura tem se tornado um recurso promotor do desenvolvimento pessoal além do profissional. Ela é uma possibilidade do conhecimento humano e de auto conhecimento.

Você vai se identificando com os personagens, se empolgando com aquelas situações, é inevitável que não tome uma posição diante de um dilema – será que este ou aquele personagem está certo? Quando você coloca isso em um grupo cada pessoa toma uma posição diferente, de acordo com seus valores, seus afetos. Quando a gente leva a literatura para a empresa, as pessoas se conhecem melhor entre si. Você lê uma historia e se lembra de outra. Histórias puxam outras histórias. É um despertar do humano, sobre si próprio.

Como funcionam estes grupos dentro de empresas?

As empresas nos procuram com demandas específicas. Em geral, o pedido é para ampliar repertório cultural especialmente das lideranças. Ou para estimular a criatividade da equipe. Tudo depende do briefing. Eu brinco: me dá um tema que eu te digo um livro. Feito isso formamos pequenos grupos de 20 a 25 pessoas, que recebem o livro que escolhemos da empresa. Trabalho muito com clássicos. Ele não é clássico por acaso: séculos passaram e ele continua atual, ainda traduz a alma humana. Uso muito Machado de Assis, Shakespeare, Homero para falar de liderança, Guimarães Rosa. Além de levar questões traduzidas de maneira perene, dou acesso a grandes livros.

No próximo encontro, em que todos já leram, quero ouvir: como vocês leram o livro e como este livro leu vocês?

Depois tenho outros dois encontros semanais com o grupo, em geral, de uma hora e meia, onde estes temas são retomados e aprofundados. Peço para que releiam as partes que discutimos, é um momento de aprofundamento muito maior. As pessoas choram, riem, tem verdadeiras epifanias. Ouço muito: este livro me fez abrir a cabeça, estou fazendo tudo errado, preciso me reposicionar.

Num mundo de respostas cada vez mais imediatas e de pouca profundidade, você não sente nenhuma resistência a esta proposta de leitura clássica?

As pessoas reagem mais com surpresa do que com rejeição. Num primeiro momento, ficam meio em contradição: será que vou ter saco pra isso? Aí começam a ler. Os clássicos são envolventes, eles apelam para questões do nosso coração, da alma. Temos vários testemunhos de pessoas que, de repente, se transformaram em leitoras. Descobriram na literatura um instrumento para a vida. É terapêutico e algo que precisamos muito. Chego à conclusão de que não é tão difícil: é só experimentar. 

As pessoas já perceberam que tem alguma coisa de muito errada na vida. Elas não estão se sentindo bem. Falta de tempo, desumanização das relações, falta de profundidade, agressividade. Será que está certo isso? Todo mundo com burnout, ansiedade, depressão? As pessoas estão buscando algo que mostre a elas que é possível viver diferente. Eu mostro que a literatura pode ser um remédio, sim, você precisa dar uma chance a ele.

LEIA MAIS:

Ricardo Voltolini, CEO da consultoria Ideia Sustentável e co-fundador de NetZero, preparou uma lista especial dos 50 principais livros que você precisa ler para entender melhor a sustentabilidade.

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