Livre pensar – O papel das ciências humanas na educação para a sustentabilidade

Livre pensar – O papel das ciências humanas na educação para a sustentabilidade

A dificuldade em entender o conceito de sustentabilidade vem da falta de atenção ou até mesmo da fuga do questionamento sobre nossos valores e relação com o planeta. O conceito nos leva a atender as consequências das nossas ações no futuro. Essa visão não demanda nenhum conteúdo ético, apenas a atenção no seu próprio interesse no longo prazo. Uma interpretação um pouco mais profunda da sustentabilidade se aplica especificamente a questões de justiça intergeracional. Significa que nosso primeiro dever é assegurar às gerações futuras o acesso aos recursos. Uma prática sustentável pelo tempo de nossas vidas pode não ser prudente para um futuro indefinido.
Contudo, outros defensores da sustentabilidade interpretam o conceito de forma ainda mais rigorosa e exigente, pedindo justiça intra-geracional assim como intergeracional. Alguns viram a definição da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimentocomo um mandato para considerar as necessidades de todas as pessoas do presente e também garantir que as necessidades do futuro não sejam comprometidas. Indo além do que a Comissão Mundial pretendia, surgiram ainda outros grupos que endossaram explicitamente a justiça social como componente chave da sustentabilidade. Portanto o World Business Council for Sustainable Development WBCSD definiu o conceito como “integração do desenvolvimento econômico com proteção ambiental e equidade social”.
Assim, a questão da sustentabilidade abrange uma enorme margem de significados, mas é limitado na sua utilidade, falta ainda uma resolução das suas diferentes interpretações. Como podemos reconciliar os valores da sustentabilidade econômica, ambiental e social, que competem entre eles? Não existe uma ideia que seja apresentada nos debates sobre valores fundamentais e como eles devem ser tratados em relação uns com os outros. As discussões sobre sustentabilidade, aparentemente, não abordam com profundidade essa questão, talvez até tenham evitado entrar nesse campo. Mas é justamente esse debate que vejo como papel fundamental para as ciências humanas na universidade, o que nos leva à discussão do ensino de valores.
No século XX, duas tendências distintas contribuíram para uma relutância crescente na universidade sobre o ensino de valores. Uma é a ascensão do movimento chamado positivismo, em que a meta era emular a ciência em todas as disciplinas adicionando uma distinção estrita entre fatos (considerada “objetiva”) e valores (considerados “subjetivos”). A ascensão das ciências sociais reflete em particular uma preocupação em seguir um estudo neutro e sem falar de valores do ser humano. Debater valores, nessa perspectiva, não seria científico. Não se pode fazer nada além de gravar valores ou preferências como simples fatos dados sobre os seres humanos. Valores, por eles mesmos, não são verdadeiros, nem falsos, então não podem ser assunto de uma disciplina científica.
A outra tendência é a visão política conhecida como pluralismo liberal, da qual John Rawls é o maior defensor. Nessa visão, uma sociedade democrática liberal é aquela em que o indivíduo escolhe seus valores por ele mesmo, sem que ninguém os imponha. Na sociedade liberal, a meta é obter um estado que seja neutro em relação à competição de valores definitivos.
Como Rawls diz, em uma democracia, cidadãos “não podem chegar e nem mesmo se aproximar de um entendimento mútuo na base das suas compreensivas doutrinas irreconciliáveis”. Notavelmente, ambas as filosofias terminam na mesma posição: a noção de verdade ou falsidade na área dos valores precisa ser abandonada, ou como pensa Raws, “a verdade ou correto precisam ser trocadom pela ideia de politicamente razoável”.
O resultado é que, na maior parte de um século, professores universitários têm ficado cada vez mais incomodados com a idéia de ensinar valores na sala de aula. Metas sociais se tornaram mais focadas no crescimento econômico como um meio de se evitar questões difíceis sobre valores. A ideia era satisfazer quantas preferências fossem possíveis no lugar de tomar decisões sobre quais valores deveriam exceder outros. Usando uma metáfora, no lugar de nos concentrarmos na divisão do bolo, deveríamos pensar em um jeito de fazer o bolo maior.
Sem dúvida, essa ênfase em crescimento social e econômico impiedoso é, em parte, culpa da nossa atual crise ambiental. Todavia, parece que estamos finalmente emergindo desse consenso positivista/pluralista e da ideia ingênua de que crescimento é a solução para todos os nossos problemas ou, ao menos, um jeito de se evitar as dificuldades e escolhas. (De fato, isso se dá à medida que reconhecemos que crescimento incontrolável por si seja parte do problema).
Assim, como crescemos para fora do cientificismo que dominou tanto os acadêmicos do século XX, vejo um papel central re-emergindo para as ciências humanas em particular na redescoberta da necessidade da discussão explícita de valores. De fato, talvez a educação de valores seja a parte mais importante das áreas humanas. Tal educação toma muitas formas: a valorização de teorias e princípios morais à medida que toma lugar em uma aula de ética, o treinamento histórico nas tradições culturais e religiosas que formaram o debate atual e a consideração implícita de valores que são centrais no encontro com grandes trabalhos de literatura.
Depois, precisamos ir além da dicotomia entre o modelo autoritário e o pluralista. No modelo autoritário, os valores são fixados e determinados e precisam ser simplesmente impressos nos jovens. No pluralista, os valores são subjetivos ou relativos, podendo ser escolhidos livremente pelos indivíduos. Uma alternativa entre os dois extremos é o que poderíamos chamar de modelo deliberativo, segundo o qual os valores são escolhidos por um processo de discussão aberta mirando o consenso democrático.
Nessa perspectiva, valores são objetivos e racionais e podem ser pauta de um debate baseado na razão, ainda que não sejam simplesmente lidos fora da estrutura do mundo como uma lei da natureza. Valores são produto de comprometimento individual, mas esse comprometimento sempre toma lugar em um contexto social e cultural , assim como se tornam assunto para desenvolvimento e renegociação em uma comunidade. São os estudos humanos que providenciam o fórum ideal para se criar e debater tais questões.
Os departamentos humanos nas universidades precisam, desta maneira, representar um papel central no debate sobre a sustentabilidade. O próprio conceito está, na melhor das hipóteses, em um ponto inicial para se considerar os valores múltiplos e conflitantes que estão em jogo: o padrão de vida da geração atual, justiça social, preservação de recursos para as futuras gerações e respeito por outros seres vivos e pela integridade dos ecossistemas.
Uma meta central precisa ser o desenvolvimento de hábitos essenciais em uma democracia. A disposição de engajamento em debates sobre valores (mesmo valores extremos) a resistência ao dogmatismo de qualquer tipo, as virtudes da humildade intelectual, o comprometimento moral e respeito por outros cidadãos como participantes iguais na construção de uma boa sociedade. Isso será essencial para o debate sobre desenvolvimento sustentável, um debate que está apenas começando.
Whitley Kaufman é professor de filosofia da Universidade Massachusetts Lowell.

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