Livre pensar – Economia criativa e desenvolvimento: desafios e oportunidade

Livre pensar – Economia criativa e desenvolvimento: desafios e oportunidade


Imagine um setor cujos recursos se renovam e multiplicam com o uso, que seja uma atividade com forte desempenho econômico mas que vai além disso atuando como fator de interação  social, ambientalmente correto e que fortalece os valores, diferenciais e credibilidade de comunidades e empresas.
Pois esta “galinha de ovos de ouro”, ainda tão pouco conhecida por nossas lideranças é, segundo tendências mundiais, o grande motor do desenvolvimento no século XXI. Segundo a ONU a Economia Criativa já é responsável por 10% do PIB mundial. A UNCTAD divulga que entre 2000 e 2005 os produtos e serviços criativos mundiais cresceram a uma taxa média anual de 8,7%, o que significa duas vezes mais do que as manufaturas e quatro vezes mais do que a indústria.
O conceito ainda em formação, foi criado para designar um setor que inclui, porém, extrapola a cultura e as indústrias criativas. De forma muito simplificada, podemos dizer que reúne as atividades que têm na cultura e na criatividade a sua matéria prima. É um conceito amplo o suficiente para incluir nossa diversidade, tanto de linguagem quanto de modelos de negócios, englobando uma vasta gama que vai do indivíduo que trabalha educação complementar por meio da música a uma grife de automóveis de luxo.
O diferencial que alguns de nós (principalmente da América Latina) damos ao tema é o foco em desenvolvimento sustentável e humano e não mero crescimento econômico. Quando trabalhamos com criatividade e cultura, atuamos simultaneamente em quatro dimensões: econômica (em geral, a única percebida), social, simbólica e ambiental. Isso leva a um inédito intercâmbio de moedas: o investimento feito em moeda-dinheiro, por exemplo, pode ter um retorno em moeda-social; o investimento realizado em moeda-ambiente pode gerar um retorno em moeda-simbólica, e assim por diante.
As características acima permitem que, ao promover a inclusão de segmentos periféricos da população mundial, ela também forme mercados. Afinal, não é mais possível só brigar por fatias de um mercado que engloba apenas 30 a 40% da população mundial. É preciso fazer com que os 60 a 70% restantes adquiram cidadania de fato, conquistando também seu papel como consumidores.
Economia da abundância

Para melhor compreender por que a economia criativa é tão estratégica para o desenvolvimento sustentável é importante situar o momento presente, uma época à qual os historiadores do futuro provavelmente vão se referir como sendo talvez ainda mais significativa que a passagem para o Renascimento.
Isso porque vivemos a época de passagem de milênios em que a vida esteve organizada em torno de recursos materiais e tangíveis, para uma era que tem sua centralidade nos recursos imateriais e intangíveis. Terra, ouro ou petróleo são finitos e inelásticos, e por isso geram disputa. Cultura, conhecimento e criatividade são infinitos e elásticos. São recursos que não apenas não se esgotam como se renovam e multiplicam com o uso. Assim, podem gerar cooperação e não disputa.
O desafio agora é fazer com que as lideranças dos setores público, privado, terceiro setor e empreendedores criativos tenham consciência desta mudança de época, dos enormes potenciais que ela oferece e da mudança de mentalidade e políticas para aproveitá-los.
A própria economia terá que ser revista, já que sua definição era “gestão dos recursos escassos”. Criatividade e cultura são recursos abundantes, especialmente nos países do hemisfério sul, e representam um enorme patrimônio, provocando uma revisão no conceito de riqueza e pobreza. Além do mais, a economia criativa tem estreita relação com as novas tecnologias – e bits também são infinitos…
Estratégias de atuação e experiências
Apresento a seguir dez fatores que considero estratégicos para atuação em Economia Criativa e desenvolvimento. Eles são simultaneamente desafio e oportunidade.
1) Novos valores, indicadores e medidas: necessitamos perceber que recurso é muito mais que dinheiro, que riqueza vai além do econômico e deve incluir as dimensões cultural, social e ambiental. Ao lidar com o intangível é preciso passar do quantitativo ao qualitativo e avaliar mais os impactos — o que mudou — do que resultados numéricos. Sem isso, seria como tentar medir litros com régua… Neste sentido, a economia, acostumada a lidar com a linearidade do tangível e material, terá que se transformar para poder abarcar a multidimensionalidade do intangível.
2) Articular a macroeconomia de escala com a microeconomia de nicho : economia criativa para o desenvolvimento sustentável têm como eixos centrais a inclusão e convergência. A primeira coisa a integrar é a macroeconomia de escala (século XX) com a microeconomia de nicho (século XXI, baseada na noção de cauda longa de Chris Anderson). Exemplo: como integrar a rendeira do interior de uma pequena vila com o estilista de grife de alguma cidade global?
3) Sensibilizar lideranças:a articulação entre macro e micro e a convergência entre setores público, privado, sociedade civil e empreendedores criativos requer uma mudança de paradigma. É preciso preparar terreno para isso: sensibilizar e instrumentalizar as lideranças e criar ambientes adequados (capacitação, instrumentos jurídicos, gestão) para que a economia criativa possa florescer.
4) De produtos a processos: o tangível se concretiza em produtos e o intangível em processos, que são mais difíceis, pois exigem visão sistêmica, ação integrada e continuidade ( e além disso são menos visíveis e portanto parecem menos atraentes para financiadores…).
5) Ação integrada e transdisciplinar: para trabalhar com processos a grande dificuldade da economia criativa, também a sua maior oportunidade, é o fato de necessitar ação multissetorial e transdisciplinar. Nossas instituições – academia, empresas, governos- não estão absolutamente preparadas para ações convergentes, integradas. Portanto são necessários profissionais, ferramentas e instituições de caráter transdisciplinar que possam exercer o papel de conector e de articulador de informação.
6) Economia solidária e novas formas de gestão : a ação integrada e convergente deve estar norteada por uma mudança de mentalidade da qual depende todo o processo: re-significar a idéia de crescimento, sucesso, conforto. Para que o planeta – e tudo o que nele se insere – seja sustentável e sobreviva é preciso um novo conceito de riqueza, recursos, valores. Riqueza não apenas material, mas ambiental, social e simbólica. Riqueza definida como “abundância que não gera escassez.” Isso implica inicialmente uma mudança de foco do financismo predatório, no qual o dinheiro é investido na especulação, para o desenvolvimento em que o dinheiro é investido na produção sustentável.
7) Inovação dos produtos e processos culturais e criativos: novas aplicações e funções, novos espaços, novos públicos e novas linguagens permitem maior adequação a tudo o que vai caracterizar este século XXI.
8) Novas tecnologias e produção e distribuição alternativas: nesta perspectiva de atuação com ênfase em processos e não em produtos, torna-se ainda mais importante o foco na distribuição, pois o poder está onde está o controle da distribuição. Entretanto, nossas políticas, esforços e financiamentos ainda estão mais focadas no incentivo à produção.
9) Visibilidade e acesso: Numa economia de nichos, da diversidade e globalizada, o desafio é saber quem faz o quê, onde e como. Como ser localizado no mar de informações que o mundo se tornou? Isso implica novas mídias, redes e plataformas digitais.
Finalmente, concluo que um elemento-chave para catalisar este processo é a visão de futuros desejáveis necessária para provocar a mudança de mentalidade rumo a uma situação mais sustentável. Precisamos imaginar e criar os futuros que desejamos e, a partir daí, orientar nossas escolhas na condução de processos e políticas que permitam sua construção. A Economia Criativa nos oferece muitas oportunidades de inovação de produtos e processos para que isso seja possível.
Clique aqui para saber mais sobre futuros desejáveis.
Lala Deheinzelin é diretora da Enthusiasmo Cultural e assessora para o Programa de Economia Criativa da Special Unit  on South South Cooperation, PNUD.

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