Memória fantástica e forte raciocínio lógico: como um pai fundou uma empresa focada em inclusão ao pensar o futuro do filho autista

abril de 2024

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Pai de um garoto autista, o dinamarquês Thorkil Sonne tinha uma grande preocupação: qual seria o futuro profissional do filho, Lars? Ele observava suas dificuldades de interação e comunicação, mas também percebia características notáveis, como uma memória fantástica e um raciocínio lógico diferenciado.

Decidiu pesquisar sobre o assunto e descobriu que havia pouquíssimas experiências de inclusão para pessoas neurodiversas. Em 2004, Sonne pediu demissão da empresa de TI onde trabalhava, hipotecou sua casa e fundou a Specialisterne. Quase 20 anos depois, sua organização de impacto social já capacitou e incluiu 10 mil pessoas  no mercado de trabalho de 22 países. Só no Brasil, onde está presente desde 2015, foram 180.

“Sim, as pessoas com autismo têm dificuldades de comunicação e interação social, mas também têm características que podem contribuir para o mundo do trabalho”, afirma Marcelo Vitoriano, diretor geral da Specialisterne Brasil, que é psicólogo de formação e se encantou logo no início da carreira com a capacidade transformadora dos processos de inclusão.

“Por que não olhar também para o potencial em vez de focar só na dificuldade?”

De acordo com dados da Specialisterne, mais de 1% da população mundial tem autismo e 85% desses adultos estão desempregados. Para incentivar experiências profissionais, a organização investe em educação nas duas pontas: oferece as ferramentas necessárias para as pessoas atuarem profissionalmente e terem sucesso, mas também se dedica a capacitar quadros das empresas para lidarem da melhor maneira com os novos funcionários.

Marcelo Vitoriano, diretor geral da Specialisterne Brasil. (Foto: Divulgação)

Qualquer pessoa autista com mais de 18 anos pode se inscrever nos treinamentos gratuitos com duração de três meses oferecidos pela organização – basta se interessar por computador, já que a maioria das vagas requer essa habilidade. O conteúdo inclui capacitação técnica e de soft skills, que estão entre as maiores dificuldades para a entrada ou a permanência de autistas no mercado de trabalho.

O passo seguinte, que é a inserção dos profissionais nas empresas, segue dois modelos: formação de turmas exclusivas para determinado cliente ou contratação e prestação de serviço por meio da própria Specialisterne. Nesse caso, a terceirização tem um período de no máximo um ano, suficiente para poder conhecer o contratado e verificar seu desempenho.

É possível trabalhar em qualquer área, mas características como hiperfoco e detalhismo podem render resultados positivos de desempenho em trabalhos que demandem análise, tratamento de dados, atenção e concentração.

CAPACITAR PARA ACOLHER

Para receber os profissionais com autismo, as empresas também passam por um ciclo de treinamento, que já começa no recrutamento e na seleção. Para que esse processo não seja excludente, é preciso haver flexibilidade para adaptá-lo às necessidades específicas. Dinâmicas de grupo, por exemplo, colocam a comunicação como fator decisório para contratação, dificultando a avaliação de pessoas com autismo.

Para se ter uma ideia da importância de se pensar e utilizar formas diferentes de avaliação, Vitoriano conta que a Specialisterne já foi procurada por um jovem autista que tinha mestrado na famosa universidade italiana Politécnico de Milão, mas não tinha sucesso em processos seletivos por conta da dificuldade de comunicação.

Com a decisão sobre a contratação tomada, é hora de preparar a empresa para os novos funcionários, com workshops e palestras focados no entendimento de diferenças. É preciso estar ciente que pessoas com autismo talvez não consigam olhar diretamente nos olhos durante uma conversa, movimentam as mãos com maior frequência e têm necessidade de pausas durante o trabalho à frente do computador por conta de hipersensibilidade e ansiedade.

Durante a duração do programa, uma equipe de psicólogos especialistas em autismo da Specialisterne acompanha tanto o funcionário, atuando quase como um coach, quanto seus pares e líderes, para lidar com dúvidas e questões que possam surgir.

“A prática mostra que pessoas com autismo têm, sim, capacidade para trabalhar, impactar as empresas e ser talentosas assim como outras pessoas, desde que tenham oportunidades e que as empresas também estejam preparadas para elas.”

Sala de formação de profissionais na Specialisterne. (Foto: Divulgação)

MAIS DIVERSIDADE NA DIVERSIDADE

Desde que chegou ao Brasil, a Specialisterne já capacitou em suas unidades de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, e de São Paulo (em breve, será inaugurada uma terceira, no Rio de Janeiro) cerca de 250 pessoas e incluiu 180 no mercado de trabalho, com taxa de retenção de 90%. Hoje, conta com 30 empresas parceiras, como SAP, Itaú, IBM, J&J, Nestlé e a farmacêutica Takeda, que este mês deu início a seu primeiro programa-piloto com quatro autistas que, pela primeira vez na vida, têm a chance de viver uma experiência profissional.

Se hoje há um interesse cada vez maior sobre o tema, especialmente pelo boca a boca de empresas que têm experiências positivas para contar, a missão da Specialisterne por aqui nunca foi simples. As primeiras a apoiar a organização foram empresas com as quais já havia uma parceria global, como a criadora de softwares de gestão SAP. Outro projeto inicial foi com o banco Itaú, que começou com dois autistas em sua equipe e hoje já recebeu 40 pelos programas firmados com a Specialisterne.

“Quando começamos no Brasil, era muito difícil para as empresas entenderem a inclusão de autistas no mercado de trabalho porque ainda existia um viés muito grande de achar que autismo significava incapacidade e dificuldade”, conta Vitoriano.

Esse cenário está em transformação, sobretudo pela valorização dos resultados de uma equipe mais diversa, mas ainda há muito espaço para crescer. “A gestão de projetos de diversidade e inclusão dentro das empresas não pode ser seletiva. É preciso falar com uma variedade maior de pessoas e, com a preparação adequada, as empresas têm a chance de ter em sua equipe não só um bom profissional, mas uma experiência que valoriza uma cultura mais colaborativa e de diversidade e inclusão, que é tudo que se quer hoje em dia.”

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