Cinema Social – Quem, como e por quê deve pagar a nossa produção?

20 de março de 2006

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Como o leitor pode notar no alto da página, Cinema social é o nome deste espaço, que tenho o prazer de ocupar, propondo um ou dois tópicos para debate por edição, desde que IdéiaSocial foi criada. Pressupõe-se, portanto, que exista uma fatia da produção audiovisual brasileira que mereça ser considerada social, em oposição a um outro bloco, o não-social – industrial, comercial ou de mercado, talvez? Tanto faz. Se o critério de avaliação for conteudista e se relacionar de certa forma à pretensão dos realizadores, seria muito natural, de fato, propor essa distinção.
Como ocorre em todos os países do mundo ocidental, apenas uma parcela dos filmes realizados todos os anos têm compromisso com a reflexão ou com a denúncia de caráter sociopolítico. Em linhas gerais, esses oferecem alguma espécie de contribuição, pequena que seja, ao desenvolvimento de uma sociedade menos desigual. Os outros estariam mais preocupados com questões de mercado, não de todo desprovidas de repercussão social, lembre-se, em uma sociedade de consumo, onde ingressos vendidos geram empregos diretos e indiretos, que geram pais de família assalariados, que geram crianças alimentadas, saudáveis e escolarizadas, que por sua vez podem adquirir cidadania plena.
Perfeito. Façamos, no entanto, um pequeno exercício de especulação. Mudemos o sentido de social agregado a cinema. Combinemos então que cinema socialseria aquele produzido pela sociedade, materialmente falando. Com recursos da sociedade, ou seja, verbas destinadas ao bem-estar de todos. Nessa linha de raciocínio, quase que só um cinema existe hoje no Brasil, e ele seria social, pois nasce da concessão de dinheiro público a produtores, por via direta (graças a concursos promovidos por secretarias de Cultura e empresas estatais) ou indireta (devido a mecanismos de incentivo fiscal, na esfera da União, dos Estados e dos Municípios, que permitem a empresas o abatimento de parte dos impostos devidos desde que aplicados na realização de filmes previamente autorizados a se beneficiar do sistema).
É o momento de virar para o lado e fazer aleatoriamente, a quem estiver em sua companhia, a pergunta que deixa muitos produtores de cinema irritados: “Você sabia que filmes, no Brasil, são feitos com dinheiro que deveria entrar nos cofres públicos e fomentar benefícios variados à população?”. Outra: “Você sabia que, como os mecanismos de incentivo prevêem que as empresas se tornem proprietárias de títulos de investimento, elas podem eventualmente lucrar com esse mesmo dinheiro que deveria ter entrado nos cofres públicos?”. Se a resposta for “sim” às duas perguntas, parabéns: você está rodeado de pessoas muito bem informadas. Desconfio, porém, que mesmo entre leitores de jornais e revistas haverá um enorme contingente que desconhece tudo isso.
Reside aí a explicação para que filmes brasileiros – provavelmente, caso único em todo o mundo ocidental — sejam precedidos por extensa relação de logotipos de empresas. “Patrocínio” (seguem-se logos), “apoio” (seguem-se mais logos) e “empresa Tal apresenta” (entra, triunfante, o logo principal) costumam vir antes dos créditos de abertura. Generosidade feita com capital privado? Coisa nenhuma, como se vê. Cabe entender a linha de raciocínio que conduziu a esse cenário:
1.Diante da supremacia da indústria americana em todo o Ocidente, e também em alguns países do Oriente, o estado precisa atuar de alguma forma no incentivo à produção, uma vez que o mercado, sozinho, não é capaz de manter a atividade.
2.Deixe-se então que a atividade morra? Bem, não é o que países desenvolvidos como a França, a Alemanha e o Reino Unido pensam. Considera-se, em primeiro lugar, que o audiovisual tem importância estratégica no cenário cultural. Lembre-se, por exemplo, do que o cinema americano faz em nome dos valores americanos, contribuição incalculável à disseminação da idéia de que o Império tem sede em Washington. Em segundo lugar, como já se lembrou aqui, o audiovisual tem importância econômica, ao gerar empregos e manter divisas no país. Parcela significativa do dinheiro que o leitor deixa na bilheteria para ver um filme estrangeiro vai-se embora da nossa economia.
3.Como a atividade cinematográfica quase desapareceu durante o governo Collor, os esforços governamentais se voltaram à retomada da produção, daí os concursos e os mecanismos de incentivo (renúncia, como preferem alguns) fiscal.
Problemas:
a) O modelo de apoio à produção adotado pelo Brasil tem defeitos graves. A Argentina, por exemplo, resolve de maneira bem mais satisfatória a necessidade de apoio. De acordo com o nosso modelo, quem exerce o maior poder sobre os filmes a serem realizados são os presidentes e diretores de marketing das grandes empresas, que aprovam ou não os pedidos de participação. É compreensível que eles gostem de certos temas e atores, já que a imagem da empresa estará associada ao produto. Mas fazem isso, não se esqueça, usando dinheiro que deveria ser público.
b) Não adianta muito produzir filmes se eles não forem distribuídos em condições minimamente competitivas em relação ao produto estrangeiro, e se não houver salas para exibi-los. Seria preciso investir de maneira agressiva nos setores de distribuição e exibição país afora.
c) O debate em torno desses aspectos, e de uma infinidade de outros, costuma ficar restrito aos representantes do setor, que por sua vez se dividem em grupos de interesse muitas vezes antagônicos.
A chamada “sociedade” sabe que há algo de errado por aí apenas quando a imprensa torna públicas as escaramuças entre esses grupos, como ocorreu no início de 2006, principalmente por causa de um concurso do BNDES que distribuiu verbas para alguns, mas deixou muitos outros a ver navios (não há dinheiro para todos, claro).
Social, sim, mas não muito.

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