Cinema Social – Consumo de infância

Cinema Social – Consumo de infância


Certa vez um jornalista perguntou ao cineasta Abbas Kiarostami – o principal nome da produção iraniana que desembarcou no Ocidente, a partir dos anos 90, com um frescor semelhante ao do neo-realismo italiano dos anos 40 – por que seus filmes e os de seus conterrâneos traziam, quase sempre, personagens infantis. De fato, muitos dos longas-metragens iranianos que cruzaram as fronteiras (e o rígido controle governamental) do país nestes últimos 15 anos – na verdade, apenas uma pequena parcela da produção iraniana contemporânea, justamente aquela com maior possibilidade de trânsito internacional – têm crianças como protagonistas.
Kiarostami, com ar de surpresa e sinceridade que não autoriza a imaginar resposta preparada de antemão, disse que nunca havia pensado no assunto e que talvez, da sua perspectiva, ele não se apresentasse daquela maneira, uma vez que, desconfiava, os filmes com crianças não representariam uma corrente majoritária no conjunto da produção de seu país. Mas, se o jornalista havia feito a pergunta a ele, certamente é porque assistira a muitos longas iranianos com aquelas características, e merecia ao menos uma tentativa de esclarecimento.
Que veio, na seqüência, com um raciocínio de absoluta limpidez, para não dizer obviedade. O Irã tem uma grande população de crianças e adolescentes, observou Kiarostami. Depositamos muita esperança no futuro dessas gerações, nos preocupamos com seus dramas e com o país que entregaremos a elas. Como o tema está presente na sociedade, argumentou Kiarostami, está presente também na produção cinematográfica. Simples como dois e dois costumam somar quatro: nos EUA e na Europa, crianças e jovens aparecem em clássicos de todas as épocas. Há, no entanto, outra dimensão a analisar.
Em anos recentes, o uso de personagens infantis como protagonistas revelaria, na avaliação do ensaísta Ismail Xavier, professor da USP – Universidade de São Paulo, “um problema central”. “Elas são os personagens recorrentes e de maior sucesso no cinema mundial hoje. Isso ocorre, primeiro, porque há a questão de uma geração que perdeu a referência paterna e, de outro lado, tem o desencanto total com a história. Hoje é muito difícil assistir a um filme e aceitar a figura de um adulto herói. As personagens positivas hoje são muito difíceis de serem verossímeis, há uma certa desconfiança do mundo.”
Xavier nota que, nos “dramas sérios”, há “uma situação na qual é muito difícil trabalhar personagens positivas, que se coloquem como heróis potentes e com capacidade de decisão”. Assim, temos “um sentimento de que realmente a personagem que pode ser tratada com seriedade e simpatia, positivamente representada, portadora de valores com as quais as pessoas se identificam, é a criança”. Ao lembrar que “vários filmes ganharam festivais internacionais com criança como protagonista” nos últimos anos, ele menciona Central do Brasil, de Walter Salles. “Essa é também a força de Cidade de Deus: primeiro, porque são personagens crianças e segundo, porque os garotos são extraordinários”, afirma em entrevista a Mariluce Moura e Neldson Marcolin para a revista Pesquisa Fapesp, edição 94, de dezembro de 2003.
Faz mais sentido, portanto, aplicar à produção recente brasileira a lógica de Xavier, e não a de Kiarostami. Pois, se filmes sobre crianças e adolescentes são naturais em país de população jovem, por aqui há uma estranha inversão: contam-se nos dedos quem se dedicou a explorar seu universo com a disposição de entendê-lo e fôlego para explicá-lo, sobretudo quanto às conexões sociais e culturais da infância e adolescência. Onde crianças e jovens costumam (ou deveriam) passar parte significativa do seu tempo? Na escola. Logo, em filmes estrangeiros, a escola é habitualmente retratada, direta ou indiretamente (por exemplo: quando os pais, num drama ou comédia americano que nada tem a ver com educação, se organizam para levar ou buscar os filhos na escola).
São numericamente desprezíveis, porém, as produções brasileiras que de algum modo, ainda que de importância secundária para a trama, mencionem a existência do sistema educacional. E, como sabemos, trata-se de coisa pouca, quase nada, no cotidiano do país: de acordo com o Censo Educacional 2004, do Ministério da Educação, temos cerca de 57 milhões de alunos no ensino básico. (Justiça seja feita: o recente Meu tio matou um cara, de Jorge Furtado, não só fala do mundo jovem com desenvoltura e sem intenções escamoteadas, como demonstra aguda compreensão da dinâmica psicológica estabelecida entre adolescentes por causa, em boa medida, da convivência escolar.)
Mais razoável, portanto, é a lógica de Xavier: quando aparecem em filmes brasileiros, as crianças e adolescentes estão ali a serviço de algo que não se confunde com genuíno interesse pelo que pensam, desejam e fazem (ou não permitem que façam). Pode ser estratégia de dramaturgia, voltada à sensibilização e sedução do olhar adulto, como em Central do BrasilCidade de Deus. Pode ser também como objeto usado pragmaticamente para a defesa de uma tese, como em Quanto vale ou é por quilo, de Sérgio Bianchi. Que, em sua veemente mas desarticulada denúncia da indústria da pobreza no país, aproxima-se do que, em relação a meninos de rua, mas não só a eles, aponta o educador espanhol Enrique Martínez Reguera.
“Se o menino é pobre, precisamos resolver sua pobreza. Para tanto, só é preciso um tipo de atenção. Agora, se o menino é pobre, doente mental, delinqüente e usuário de drogas, precisamos de muitos profissionais para atendê-lo. O garoto é formalizado como matéria de consumo de muitas ONGs, fundações, igrejas, empresas, profissionais. Os problemas dos meninos estão sendo formalizados como um negócio de grande interesse econômico.”
Martínez Reguera vai um pouco adiante. “Antes vivíamos em uma sociedade de consumo: quem tinha dinheiro, consumia; quem não tinha, se afastava. Agora, vivemos em uma sociedade de consumidores e consumidos: uns consomem bens e outros são consumidos como matéria na mão-de-obra barata, como usuários de drogas e por muitas instituições que vivem do negócio da segurança”, em entrevista a Eliana Raffaelli para a revista Educação, edição 101, de setembro de 2005
É preciso – com urgência – que o cinema brasileiro se refira a isso com mais freqüência e contundência.
*Sérgio Rizzo é jornalista, editor da revista Educação, crítico de cinema da Folha de S. Paulo e professor da Universidade Mackenzie.

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