Cinema Social – Al Gore, ou a arte de falar para poucos e bons

Cinema Social – Al Gore, ou a arte de falar para poucos e bons


O gigantismo da indústria cinematográfica norte-americana leva seus executivos a prezar, acima da chamada “qualidade artística”, os números alcançados por seus produtos no lançamento, como o número de espectadores e a arrecadação nos cinemas, que ainda funcionam como plataforma para a subseqüente venda de filmes nos mercados de vídeo doméstico e de televisão, e também para a geração de receitas com a comercialização de inúmeras mercadorias associadas aos personagens (cadernos, bonecos, figurinhas etc.).
De acordo com esse critério, Al Gore teria uma promissora carreira em Hollywood como… político liberal, não mais do que isso. O documentário “Uma Verdade Inconveniente”, estrelado pelo ex-senador e ex-vice-presidente dos EUA, foi lançado em 29 de maio de 2006 em apenas quatro salas. Uma semana depois, estava em 77 cinemas dos EUA. No início de julho, atingiu o pico, ocupando 587 salas. Em novembro, saiu de cartaz no país. Nesse período, arrecadou US$ 23,8 milhões.
Para comparar laranja com laranja, ou documentário com documentário: “Fahrenheit 11 de Setembro” (2004), de Michael Moore, esteve em mais de duas mil salas e arrecadou US$ 119,1 milhões; “A Marcha dos Pingüins” (2005), de Luc Jacquet, alcançou 2.506 salas e fez US$ 77,4 milhões nas bilheterias dos EUA. No Brasil, o desempenho de “Uma Verdade Inconveniente” também foi modesto: lançado em 20 salas, foi visto por 85.980 espectadores, que deixaram cerca de R$ 580 mil nos cinemas (ou menos de US$ 300 mil). Documentários nacionais como “Surf Adventures” (2002), de Arthur Fontes, e “Vinicius” (2005), de Miguel Faria Jr., fizeram carreiras de três a quatro vezes mais significativas na linguagem dos cifrões.
A frieza dos números esconde, no entanto, um sucesso de estima que torna o filme com Al Gore — já disponível em DVD no Brasil — um caso provavelmente único na história do documentário e, talvez, do cinema. Seu lançamento coincidiu com o aumento na disseminação, em todo o planeta, da idéia de que as condições ambientais da Terra se encontram em processo de franca deterioração e de que o aquecimento global não é um fenômeno programado para o futuro distante, e sim para um amanhã bem próximo, cujos contornos, bem definidos, podem ser identificados hoje. Mais do que apenas coincidir com a circulação desse diagnóstico para um público mais amplo, “Uma Verdade Inconveniente” despertou boa parte dos meios de comunicação para a emergência desses temas.
Junte-se a isso tudo a onda recente (já em 2007) de divulgação de relatórios e de realização de conferências sobre o meio ambiente, e chega-se a indícios visíveis de mudanças comportamentais que, se não podem ser exclusivamente atribuídas a Gore e seu documentário-palestra, receberam dele uma dose substancial de combustível.
Dito de outra maneira: entre os relativamente poucos espectadores do filme, encontravam-se líderes governamentais, empresariais e de movimentos sociais. Poucos e bons, portanto. Foi a partir desse público restrito, mas formador de opinião e responsável por processos de tomada de decisões que afetam centenas, milhares ou até milhões de pessoas, que programas de conscientização e ação para os riscos do aquecimento começaram a se multiplicar por corporações, escritórios de administração pública e escolas.
Dirigido por Davis Guggenheim, mais conhecido pelo seu trabalho na TV (em episódios de séries como “E.R. – Plantão Médico”, “24 Horas” e “Alias”) e pelos dois filhos que tem com a atriz Elisabeth Shue (estrela de “Despedida em Las Vegas” e das partes 2 e 3 da série “De Volta para o Futuro”), “Uma Verdade Inconveniente” não carrega, à primeira vista, distinção suficiente para provocar tamanho impacto. Organizado em torno de uma palestra-show de Gore, trata apenas de incrementá-la com material que ilustra e aprofunda algumas informações. De onde vem o “diferencial”, para usar um termo de mercadologia? Em primeiro lugar, da oportunidade do assunto: uma coisa é saber que o sistema solar será destruído daqui a bilhões de anos, e outra, bem diferente, é entender que seu filho poderá receber de herança um planeta hostil à sua própria sobrevivência se não forem tomadas medidas imediatas para impedir o avanço de diversos problemas ambientais.
O mais importante no filme, contudo, talvez seja mesmo a presença de Gore como fiador de um quadro que bem poderia ser alarmista, superdimensionado, quem sabe até manipulado por interesses pouco nobres. Não ocorre a ninguém pensar nisso porque o professor que nos guia por essa aula impressionante acumulou ao longo da carreira um capital de prestígio que, agora, se mostra valioso. Lembre-se, por exemplo, sua aparição na cerimônia de entrega do Oscar deste ano, da qual “Uma Verdade Inconveniente” saiu com o prêmio de melhor documentário. Gore foi, Martin Scorsese à parte, o mais festejado, e teve a oportunidade (com o reforço considerável do ator Leonardo DiCaprio) de reiterar seu ponto para uma audiência global em torno de um bilhão de pessoas.
Ponto que é vital, sem dúvida. Mas, em cinema, muitas vezes quem o defende faz a diferença. Gore jamais será um James Stewart, mas até que leva jeito.
*Sérgio Rizzo é jornalista, mestre em Artes e doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, crítico da “Folha de S. Paulo” e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie

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