Trabalhadores que participaram dos movimentos grevistas na região do ABC, no final dos anos 1970 e início dos 1980, reconstituem episódios daquele período e contam como foi que suas vidas se transformaram desde então. Presidiários aprendem a manipular câmeras digitais de vídeo e registram o cotidiano no cárcere, aproveitando a ocasião para desabafos em relação à maneira como a sociedade os vê e os trata. Moradores de rua protestam contra o uso que os meios de comunicação costumam fazer de suas imagens e relatam, entre outros aspectos, a violência física e moral de que são vítimas.
Peões, O Prisioneiro da Grade de Ferro, À Margem da Imagem: qualquer balanço da produção brasileira na última temporada deve incluir esses três longas-metragens entre o que houve de mais significativo num panorama, de resto, um tanto modorrento, sobretudo na esfera do cinema de ficção realizado com a chancela, em maior ou menor grau, da Globo Filmes, o braço cinematográfico do maior grupo de comunicação do país, cuja estratégia é enfrentar no mercado o produto estrangeiro – em especial, o de origem norte-americana – com armas muito semelhantes.
São distintos, nos propósitos e na realização, os filmes de Eduardo Coutinho, Paulo Sacramento e Evaldo Mocarzel citados acima. Há algo comum, no entanto, ao DNA dos três: documentários preocupados em dar voz a quem normalmente não tem como fazer uso dela, apresentam-se como resultado de uma firme convicção – a de que o cinema deve ter compromissos com o país e sua gente. Não se trata mais, ao menos nesses casos exemplares, do antigo engajamento de ordem ideológica, expresso muitas vezes de forma populista. Quem talvez melhor defina a atual postura desses e de outros documentaristas é Coutinho, ao dizer que seu trabalho consiste em “entender as razões do outro, sem lhe dar razão”.
O ano de 2004 foi marcado, é preciso destacar, por um número recorde de documentários brasileiros lançados nos cinemas. Em São Paulo, foram 16 num total de 44 filmes nacionais, ou 36 %, proporção que provavelmente não encontra paralelo em nenhum outro país. Ainda que o público conjunto desses documentários (distribuídos, na maioria dos casos, com apenas uma ou duas cópias) tenha sido pequeno em comparação às platéias que se dirigiram aos filmes de ficção, chama a atenção o fato de que tanta gente queira fazer cinema a partir do real.
Lembre-se que os tais 16 lançados nos cinemas durante o ano passado representam apenas a ponta do iceberg, como demonstra o número crescente de inscrições, na casa das duas centenas anuais, para o É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, o principal evento do gênero na América Latina, cuja 10ª edição foi realizada em abril, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mais gente faz documentários porque, em primeiro lugar, os avanços tecnológicos favorecem o formato. Além de baratearem tremendamente o processo de realização, ao eliminar a compra de negativos e a revelação do material, as câmeras digitais são fáceis de manusear, têm ampla mobilidade em espaços restritos e conseguem gravar imagens com pouca luz.
Além disso, há o apelo formidável representado pela realidade, ou por recortes dela que raramente alcançam a televisão ou o cinema de ficção. A diversidade social, cultural e econômica do País se encarrega de fornecer matéria-prima infindável. E, ao empunhar uma câmera e sentar-se depois diante de um computador para editar o que foi captado, alguns atores sociais têm descoberto o poder de reconhecimento que as imagens proporcionam. Quem já viu, por exemplo, a emoção de adolescentes assistindo a vídeos de curta-metragem realizados por eles, e inspirados nas condições em que vivem ou nos projetos comunitários que desenvolvem, sabe que a identidade pode ser definida e afirmada por meio do audiovisual.
Coutinho, mestre inconteste dos documentaristas brasileiros, equivaleria assim a uma espécie de Ronaldinho Gaúcho – craque maior a servir de inspiração a milhares de outros jovens realizadores que, sem necessariamente a aspiração de se profissionalizar na área, encontram no documentário meio de expressão, reflexão e interação. Que o digam as Oficinas Kinoforum de Realização Audiovisual, organizadas para jovens de periferia pela equipe do Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo, há alguns anos, com resultados positivos já reconhecidos inclusive no exterior. Ou o Festival de Jovens Realizadores do Mercosul, promovido pela primeira vez, em novembro de 2004, pelo Vitória Cine Vídeo, com a participação de adolescentes e jovens adultos de diversas regiões do país, muitos deles representando ONGs que atuam em campos diversos como saúde, esporte e educação.
Sobre o que falam esses novíssimos documentaristas? Sobre o mundo mais imediato que os cerca, sobre os sonhos que insistem em manter, apesar das adversidades, sobre a luta cotidiana por um lugar ao sol em uma sociedade profundamente desigual como a nossa. A mídia ainda não detectou a amplitude desse fenômeno, mas deveria: a partir de agora, passa obrigatoriamente por aí qualquer tentativa de reconhecer, em imagens, o país onde vivemos.
*Sérgio Rizzo é jornalista e professor, editor da revista “Educação”, crítico de cinema da “Folha de S. Paulo” e membro do Conselho Deliberativo do Instituto Livre de Jornalismo – IJOR.
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