As políticas de Estado limitavam-se, não faz muito tempo, a questões fazendárias, de organização do exército e das burocracias, de segurança interna, de política externa e a outros exíguos temas. Outros atores sociais se dedicavam apenas a questões que diziam respeito aos seus interesses privados. As empresas, excetuando-se algumas práticas caritativas, restringiam sua atuação a seus negócios. E as organizações não-governamentais eram escassas.
Neste cenário, no qual se reconhecia o caráter reduzido da ação estatal junto às massas e não se cogitava a ação institucionalizada de outros atores, não é de se surpreender que muitas atitudes na arena social fossem entendidas como “favor”, benevolência ou caridade.
É no século 19 que os direitos (civis, políticos e sociais), segundo descrição de T.H. Marshall, ganham os contornos com os quais nos familiarizamos. Paulatinamente, passou-se a se preocupar em garantir os direitos que estavam sendo delineados em distintos fóruns. Aos estados nacionais foi mais simples assimilar o papel de garantidor e organizador dos direitos civis e políticos do que dos sociais, humanos e, mais tarde, ambientais. Exemplo disso é que apenas recentemente países latino-americanos começaram a contar com políticas voltadas a mulheres, crianças, entre outros.
É por isso que muitas ações no âmbito social ainda são mais vistas como “assistencialistas”, voltadas para a “população carente” e um favor do Estado, do que como direitos dos beneficiários e deveres do Estado.
Este caldo cultural logo se estendeu a outros atores. Empresas passaram a assumir um papel que vai além da geração de empregos e lucros, e organizações da sociedade civil proliferaram no intuito de colaborar com a garantia de direitos. Não obstante, estes atores, justa ou injustamente, também foram identificados com o favor e a “filantropia”. Quanto vale ou é por quilo?, de Sérgio Bianchi, apenas confere cores mais nítidas e desesperadoras a uma visão não-minoritária. Neste contexto, ainda são raras as análises das ações do setor privado e do terceiro setor como políticas públicas.
A imprensa contribui para a perpetuação deste cenário. Ela é um dos maiores intermediários, senão o principal, entre o mundo público – da política, das ONGs, das ações públicas das empresas – e o privado – dos indivíduos.
Com esta função, a mídia acaba tendo um papel ainda mais central: o de definir a agenda pública de discussões. Por meio da escolha de cobrir certos temas e “engavetar” outros, interfere na demarcação dos assuntos que estarão presentes na esferas decisórias. Assim, por muitos anos, a inflação foi a questão central da agenda pública do País. Isto não quer dizer que a fome e a mortalidade infantil não existiam, estavam “apenas” fora da pauta.
Além de interferir na definição da agenda, a mídia também auxilia no entendimento das ações dos governos, empresas e ONGs. Assim, ao constantemente associar a política de juros às metas de inflação, ela ajuda a construir um modelo analítico da política econômica, destrinchando as conseqüências daquelas duas variáveis para o câmbio, a economia real e as contas públicas. Tal procedimento nada mais é do que se valer do conceito de política pública e do instrumental para analisá-la. E é isto que desejamos ver na cobertura das políticas sociais.
A partir disso, estabelecemos duas premissas. A primeira é a de que os direitos só passarão da esfera conceitual para a real se a eles for associada uma política pública específica; ou seja, se deixarem de ser vistos como um favor e forem entendidos como estratégia compulsória do ator que os deve prover. A segunda é que o instrumental aplicado às políticas públicas não deve se restringir às ações estatais: uma política pública pode ser realizada também por empresas e ONGs.
Para uma cobertura de qualidade das políticas públicas sociais, a mídia deve atentar para os quatro aspectos. O primeiro deles é a escolha: por que foi eleita aquela determinada ação? Foram ouvidos/consultados os potenciais beneficiários para a escolha? Que cursos possíveis de ação foram considerados? Por que? Foram considerados critérios como custo/benefício e adequação à cultura local? O problema que se quer resolver é o que mais atinge o público alvo? Depois vem o desenho da política: escolhida a política, é necessário concebê-la em seus detalhes. Qual o orçamento disponível? Ele é adequado? Há envolvimento dos beneficiários nesta etapa? Na seqüência sua implementação: o que foi dito no lançamento do programa está sendo implementado? As atividades meio estão consumindo mais recursos do que as atividades fim? E finalmente a avaliação: como os beneficiários avaliam o programa? Como avaliadores externos vêem a ação? É sustentável o projeto?
Assim, fica claro que o trabalho da imprensa envolve o conhecimento do processo de concepção, implementação e avaliação de políticas públicas; a consulta a distintas fontes, de preferência com opiniões diversas; a discussão de estatísticas, legislação, histórico da região e da população – para a contextualização – e a apresentação de causas, conseqüências e soluções para o problema. Além disso, envolve, sobretudo, a visão das políticas sociais como direitos de uma população que não deve ser vista como carente, mas como cidadã. Com isto, abre-se um caminho frutífero para o entendimento das ações na área social como direitos e não como favores de atores benevolentes.
*Guilherme Canela é coordenador de Relações Acadêmicas da Andi – Agência de Notícias dos Direitos da Infância
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