Ricardo Abramovay

Ricardo Abramovay

A Era da Inovação e do Limite

Por Cláudia Piche

Professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), Ricardo Abramovay tem um extenso currículo acadêmico no Brasil e na França. Seu programa de pesquisa apoia-se, teoricamente, nas principais correntes contemporâneas da Sociologia Econômica, com ênfase em quatro temas básicos: biocombustíveis, responsabilidade social empresarial, microfinanças e desenvolvimento territorial. Não por acaso, todos ligados à sustentabilidade.

O curioso é que Abramovay enveredou por esse caminho justamente por conta de uma certa “revolta” com as Ciências Sociais. “Com exceção da Antropologia Cultural, em todas as outras áreas, sem exceção – Sociologia, Psicologia, Economia, Gestão – o conhecimento científico se consolida e se legitima à medida que ele se separa e se emancipa da natureza”, diz.

De outro lado, o pesquisador – sempre vinculado aos movimentos sociais, em especial ligados ao campo e à agricultura familiar – chegou a uma constatação. “Sobretudo naqueles com caráter de classe muito marcado, há uma fortíssima propensão a fazer com que suas causas mais nobres e universais se amesquinhem e se transformem em reivindicações ‘paroquiais’, quase corporativas.”

Felizmente, essa decepção o impulsionou a uma novo olhar. “Claro que cada segmento social pensa em seu próprio interesse. Mas, ao abordar as coisas sob a ótica da relação entre sociedade e natureza, consegue-se ultrapassar o localismo das mobilizações sociais contemporâneas. E isso nos convida imediatamente a colocar as coisas também sob a ótica da relação entre economia e ética.”

O leitor de Ideia Sustentável há de concordar: o ponto de partida não poderia ser mais instigante para uma longa conversa sobre as reflexões de Abramovay, compiladas na entrevista a seguir.

Ideia Sustentável: Como você analisa o movimento contemporâneo em relação à sustentabilidade?

Ricardo Abamovay: Trata-se de um movimento com uma característica muito importante da qual as pessoas não se dão conta: ele só pode ser bem-sucedido se conseguir se apoiar na interação entre segmentos sociais com interesses opostos. Não me refiro a algo como o movimento operário, tal como ele existiu no século XIX e na segunda metade do XX, querendo afirmar-se “ganhando dos patrões”. E também não significa que os conflitos sejam suprimidos. Na verdade, os conflitos de natureza distributiva, civilizacional, cultural e ideológica estão muito mais agudos do que jamais estiveram; mas não temos a menor chance de equacioná-los se o trabalho dos ativistas da sustentabilidade não consistir em colocar em diálogo segmentos com interesses opostos para que, disso, saia algo diferente do que estamos fazendo. Isso é algo muito interessante nesse movimento, porque surgirão novos modos de vida, em última análise.

IS: Quais as grandes tendências desse movimento em direção à chamada ‘nova economia verde’?

RA: Eu vejo duas grandes tendências e elas se traduzem em duas palavras que estão no eixo da relação entre sociedade e natureza. A primeira é quase unânime: ‘inovação’. Unânime, mas não trivial. É necessário redefinir o processo de inovação, porque, durante o século XX, ela foi concebida de maneira genérica como a invenção, a descoberta de novos processos produtivos e de novos produtos. Sobretudo, a inovação consistia num conjunto de dispositivos voltados a aumentar a produtividade do trabalho e do capital, o que resultava em mais produção e menos custos, portanto mais ganho para as empresas.

No mundo contemporâneo, estamos assistindo a um processo de mudança na natureza da inovação. O mais importante, hoje, é aumentar a capacidade de oferecer bens e serviços úteis a partir de um uso cada vez menor de matéria, energia e biodiversidade. Esse é o eixo que poderíamos chamar de sistemas de inovação voltados para a sustentabilidade. Um problema sério hoje, no Brasil, é que temos um aumento considerável de publicações científicas, com indicadores cada vez melhores; temos organizações de pesquisa voltadas ao aumento da produtividade, como a Embrapa; mas não temos um sistema nacional de inovação para a sustentabilidade, isto é, algo que sinalize para o conjunto dos atores econômicos que inovar significa produzir com a partir de novos parâmetros. Essa questão da produtividade dos recursos materiais é absolutamente crucial. O mesmo se coloca com relação à energia. O consumo de um norte-americano, por exemplo, é 19 vezes maior que o de um indiano. Claro que vamos ter de inovar, no seguinte sentido: como os recursos e a energia não são infinitos, a grande tarefa do sistema de inovação vai ser como fazer com que a energia primária – retirada do sistema planetário – se transforme em objetos úteis para a vida social da maneira mais eficiente possível. Hoje, esse processo de conversão é muito ineficiente. Inovação significa mudar isso.

IS: E quanto à segunda tendência?

RA: A segunda palavra-chave é ‘limite’. Por quê? Quando os economistas estudam o crescimento de renda, uma das questões colocadas é: se a renda crescer e os ricos ficarem mais ricos, mas, ainda assim, os pobres melhorarem de vida, então não há grandes problemas, porque os pobres evoluíram. Portanto, antes, o problema da desigualdade estava colocado num plano ético, numa questão de valor. Mas não de sobrevivência, como agora.  Quando se aborda a reprodução da sociedade partindo da premissa de que a base material e energética dessa reprodução não é infinita – e nem infinitamente substituível -, há que se levar em conta as leis da termodinâmica, como aquela segundo a qual não se consegue fazer matéria do nada, a quantidade de matéria e energia é limitada, e cada processo de conversão de matéria e energia em coisas úteis significa uma dissipação, ou seja, perde-se energia no processo. É a chamada ‘entropia’.

Nesse sentido, há três grandes limites colocados hoje de maneira estratégica e que começam a aparecer em documentos internacionais das organizações multilaterais de desenvolvimento, particularmente das Nações Unidas, mas também em documentos de organizações empresariais.

IS: Quais são esses limites?

RA: Primeiro: energia. Não dá para imaginar que o consumo humano de energia pode aumentar infinitamente. Não pode! Tem de ter um limite, porque – como já falamos – a ideia de se conseguir infinitamente extrair energia dos ecossistemas é errada. Gasta-se cada vez mais energia para se obtê-la. Segundo: limite no consumo de materiais – de construção, minerais metálicos, combustíveis fósseis e biomassa. Hoje, a média está em oito ou nove toneladas por habitante. Achim Steiner – diretor do Pnuma e coordenador do Ano Internacional da Biodiversidade (2010) – diz, em um documento da ONU, que teremos de limitá-lo a algo em torno de seis toneladas por habitante.   Em terceiro lugar, teremos de baixar as emissões de carbono – passando de 50 gigatoneladas para 10, entre 2011 e 2050 – para que a temperatura não suba além dos dois graus centígrados. Imagine o grau de inovação necessário para isso! Portanto, se não conseguirmos articular, organicamente, inovação e limite, não adianta. E não há nenhuma demagogia nessa história!

IS: Somado a isso, ainda tem toda a questão da desigualdade econômica e política entre os países, não?

RA: Certamente! E, a meu ver, esse deve ser o eixo da discussão da Rio+20:  juntar a ideia de economia verde, ou seja, de uma economia cada vez mais poupadora de materiais e de energia, com a inserção da ética no interior do sistema econômico, isto é, com a orientação do sistema econômico de forma explícita para a redução da desigualdade. O que não significa igualdade absoluta. Uma das perguntas mais importantes da Ciência Política do século XX foi particularmente formulada por John Rawls, no livro A Teoria da Justiça: “Qual o grau de desigualdade útil para a vida social?”. Imaginá-la sem nenhuma desigualdade caracterizaria quase a total ausência de progresso material. Então, há que se ter algum grau de desigualdade. A resposta de Rawls é que ele não pode ser elevado ao ponto de retirar daqueles que estão na base da pirâmide a expectativa da ascensão social, ou seja, é preciso haver uma situação de mobilidade. De certa forma, no mundo contemporâneo, houve um sucesso considerável na luta contra a pobreza e a miséria absoluta. Desde o final da década de 90, existe, anualmente, um ingresso de 80 ou 90 milhões de pessoas numa espécie de nova classe média mundial – segundo estudo da Goldman Sachs – o que não é irrisório. Pelo contrário, trata-se de um número significativo, mas são raros os casos em que esse ingresso é acompanhado de redução da desigualdade de renda (o Brasil é um caso excepcional nesse sentido). Na China, tem aumentado a desigualdade. Sobretudo nos países ricos, ela cresceu muito nos últimos anos.

Agora, esse tema está colocado em termos inéditos em função da pressão sobre o uso dos recursos e das consequências das desigualdades sobre eles. Essa é a grande novidade. E creio que seja um tema crucial que a Rio+20, as lideranças sociais e empresariais terão de enfrentar nos próximos anos, porque, cada vez mais, o ritmo do declínio no uso dos recursos para evitar situações catastróficas terá de ser mais acelerado. Isso é uma coisa que as pessoas não se dão conta.

IS: Voltando às palavras-chave dessa nova ordem mundial, como você vê o papel de governos, empresas e consumidores em relação à inovação e ao limite? Quem está inovando em cada um desses setores?

RA: Os países nórdicos estão inovando. Há empresas buscando fazer uso sustentável de recursos, da produção renovável de energia, de infraestrutura em condições limpas e de uma concepção diferente das cidades. A Siemens, por exemplo. O quanto ela consegue, de fato, é difícil dizer, embora seus avanços sejam muito consideráveis. Poucas empresas se deram conta de que produzir bens e serviços voltados para a solução dos grandes desafios civilizacionais abre uma oportunidade de ganho extraordinário. O problema é que as da velha economia – ou da velha economia remendada – são ainda fantasticamente maiores. Então, embora todos reconheçam a importância do tema das mudanças climáticas e da poluição, a indústria automobilística, por exemplo, continua produzindo o objeto mais disfuncional do ponto de vista da mobilidade urbana e das emissões, que é o automóvel – um objeto energeticamente muito ineficiente, porque usa duas toneladas de matéria para transportar 80, 100 quilos.

Porém, mais do que isso, o setor empresarial e as empresas não foram capazes ainda de formular planos de crescimento econômico cujo centro seja o melhor aproveitamento dos recursos materiais energéticos. O parâmetro pelo qual se mede a eficiência da administração pública e das empresas ainda é o da velha economia – o crescimento do PIB e a lucratividade nos balanços. Embora em franca contestação entre alguns dos mais importantes nomes da Ciência Econômica, o peso dessas formas de riqueza convencionais ainda é imenso.

IS: E isso se dá principalmente nos países em desenvolvimento?

RA: No caso desses países – particularmente o Brasil –, ocorre um fenômeno difícil de ser enfrentado, que é o potencial de crescimento econômico oferecido pela produção de minerais e de commodities. Isso representa uma pressão da geração de renda e de riqueza com base na exaustão de recursos minerais e numa economia não fundamentada no conhecimento, na inteligência. Vivemos um momento de divisão internacional do trabalho em que a América Latina e a África, em particular, exercem uma posição no fornecimento de matérias-primas muito determinante da sua própria organização econômica e até macroeconômica. Uma das consequências é uma tendência fortíssima à desindustrialização, como está acontecendo no Brasil e na Argentina.

Há, de fato, alguns segmentos tentando enxergar à frente, investindo. Os parques tecnológicos no Brasil, por exemplo, vão nessa direção. Mas há uma pressão muito forte do que há de mais convencional na velha economia, com consequências locais predatórias. A economia da Amazônia, por exemplo, é neocolonial: produz energia, mas as populações locais não têm acesso a ela. O mesmo acontece com a produção de minérios. Outra questão central é como fazer uso sustentável da biodiversidade – a capacidade de criar uma economia baseada no conhecimento da natureza e não na destruição dela, como tem ocorrido até agora. Quando analisamos a documentação do Ano Internacional da Biodiversidade, a primeira coisa que vem à cabeça é que o investimento na biodiversidade vai “bombar”. Na prática, com exceção da cadeia do açaí, um pouco da castanha, a Amazônia não tem nem indústria.  Nossa capacidade de gerar riqueza a partir dos recursos naturais naquela região é quase nula, apesar de todo o potencial. Esse é um desafio, sobretudo, para o meio empresarial. E também para o governamental, pois não há pesquisa na Amazônia à altura da riqueza representada pela biodiversidade. Não há estímulos para capitais de risco. Se essa riqueza tem um potencial empresarial, tal como exposto nos documentos citados acima, é necessário multiplicar as iniciativas e apoiar a multiplicidade delas com pesquisa, financiamento de capital de risco, abertura de mercados. Porém, as chances de ganho econômico com base na destruição são tão maiores…

IS: Esse seria, portanto, o principal obstáculo que enfrentamos para motivar a inovação?

RA: Creio que sim. E, além disso, devemos considerar que todos aqueles que estão ganhando na Amazônia com a exploração de recursos transformados em commodities – carne, soja, minérios – têm uma espécie de renda adicional derivada da própria riqueza da região com relação à qual deveria haver um tipo de contrapartida, que seria o apoio a iniciativas empresariais voltadas justamente ao contrário do que vem sendo feito. O caso da carne é o mais escandaloso: dos 73 milhões de hectares desmatados nos últimos 15 anos na Amazônia, 60 milhões correspondem à pecuária de baixa produtividade, vinculada a uma das maiores empresas brasileiras, com capital nos Estados Unidos – altamente exportadora, mas cujos efeitos multiplicadores locais são negativos. Essas empresas frigoríficas, e mesmo as de mineração, deveriam ter uma responsabilidade de criar outras dinâmicas. E acho que seria algo muito interessante do ponto de vista estratégico empresarial. Mas não vejo nenhum movimento nesse sentido. Há coisas muito significativas acontecendo no que se refere à certificação da carne, à moratória da soja, à iniciativa da Alcoa de criar o consórcio em Juriti com participação local, mas elas não chegam a criar um movimento que coloque o tema central da criação de uma economia do conhecimento de forma mais estratégica para o Brasil.

IS: E como transformar isso, então? Como fazer, sobretudo em relação às empresas, para que elas mudem esse olhar e passem a inovar efetivamente frente à nova economia e à sustentabilidade?

RA: Primeiro é necessário que o que se faz, convencionalmente, fique mais caro. O mundo vai ter de caminhar para isso, colocando preço, de alguma forma, no que hoje não tem – nas emissões de carbono, nos serviços ambientais. Mas não basta. O gradualismo nessa direção não é suficiente. É preciso uma ação e uma inspiração governamental fortes. Nos países que estão com a “faca no pescoço”, em termos materiais energéticos, essa inspiração está muito mais forte do que no Brasil, que não sofre o mesmo problema. Não somos completamente dependentes de carvão e petróleo, como é o caso dos EUA, Índia e China, e dispomos de uma matriz energética própria. Mesmo assim, os chineses estão apoiando iniciativas de criação de cidades de carbono zero, com a consultoria do célebre arquiteto americano William McDonough – autor do livro Cradle to Cradle -, levando adiante esse tipo de iniciativa. É verdade que a China abre duas usinas a carvão por mês e está se tornando um grande importador do mineral, algo gravíssimo do ponto de vista do equilíbrio geopolítico. Mas existe, por parte das autoridades chinesas, um trabalho muito consistente de fechar fábricas obsoletas e poluentes, estimular processos de inovação e orientar o setor bancário para bloquear o financiamento a iniciativas altamente emissoras. Então, o governo chinês está dando sinal para a sociedade e para os empreendedores a esse respeito. É claro que esse sinal chega de maneira imperfeita.  Mas, se hoje a China está investindo mais em energias alternativas do que qualquer outro país no mundo, isso se deve a uma orientação explícita de governo.

IS: Então você está afirmando que os grandes inspiradores desse movimento têm de ser os governos?

RA: Sem dúvida! Não bastam apenas a sociedade civil e os empresários. Os governos têm um papel absolutamente crucial. O que percebemos no Brasil é que, desse ponto de vista, os temas ligados à manutenção dos serviços ecossistêmicos, à redução das emissões e a tudo que se refere ao meio ambiente aparecem, até hoje, de maneira episódica e esporádica no discurso como um tema setorial dos ministros do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, mas não se ouve nada dos ministros do Desenvolvimento ou da Fazenda nesse sentido. Temos uma lei climática sinalizando que serão necessárias reduções, setor por setor, mas isso não aparece no modo como o governo fala com a sociedade. Acho isso grave.

IS: E qual o papel das lideranças empresariais na mudança de rota?

RA: Absolutamente fundamental e a mudança é muito recente. Se é que ela existe. Quando analisamos a indústria pesada brasileira, o discurso predominante não é “estou me preparando para, daqui a 40 anos, cortar em 80% as minhas emissões”, ou então “vou estimular processos de inovação nos quais a energia tem de ser cara porque ela é escassa e, por isso, vou utilizá-la de uma maneira mais proveitosa”. O discurso ainda é “a energia está cara. Quero energia barata”. Todo nosso discurso empresarial com relação à questão energética está concentrado em inovações importantes, sim, como as fontes de energia – no caso, o etanol -, mas não temos um processo sério de mudança na forma de utilização da energia nem pela indústria e muito menos pelo consumidor. Então, as lideranças empresariais que se voltam à questão da sustentabilidade, com raras exceções, não me parece que o façam a partir da ótica de uma verdadeira economia verde.

A missão, agora, é produzir usando cada vez menos materiais e energia, e essa é uma responsabilidade não apenas para com os acionistas, mas também com o País. Ouço esse discurso de lideranças empresariais no exterior, mas muito raramente aqui no Brasil. O próprio reconhecimento da importância das mudanças climáticas é muito recente. Até 2009, grandes organizações empresariais costumavam dizer “esse problema não é com a gente”. O documento que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) encaminhou, naquele ano, para a discussão em Copenhague (COP15), foi mais ou menos assim: “Já fizemos a lição de casa, agora cabe aos outros, porque já temos energia limpa e estamos reduzindo o desmatamento na Amazônia.” Felizmente, o discurso mudou.

IS: Apenas o discurso ou as práticas também vêm mudando?

RA: Estamos vivendo a seguinte contradição: do ponto de vista da estratégia empresarial, quanto mais conseguíssemos tornar a cadeia produtiva clara e melhorá-la estrategicamente para o futuro, estaríamos em melhores condições também no aspecto reputacional. Só que os ganhos imediatos de uma exploração feita de qualquer jeito são tão grandes que a tendência é continuar fazendo o que se sabe, da forma que der. Como mudar isso? Não sei dizer muito bem, mas acredito que há um fator de esperança, porque os riscos reputacionais ligados a comportamentos predatórios são muito altos, sobretudo em sociedades democráticas. E as empresas que não se derem conta disso e tentarem lidar com esse tema de maneira cosmética, fazendo greenwashing, ampliam o risco de seus próprios acionistas. No entanto, há situações nas quais uma empresa inovadora descobre uma técnica melhor e menos predatória, porém, quando se tenta levá-la para o mercado, outras empresas dizem que é preciso esperar o governo agir, ”porque está bom desse jeito”. E isso acontece com muita frequência.

IS: E o consumidor? Ele é o “primo pobre” dessa história ou ainda não se deu conta do seu poder de pressão, se é que ele tem esse poder?

RA: O consumidor, sem dúvida, tem um poder destrutivo imenso. Mas, por maior que seja a responsabilidade do consumidor – e é bem grande -, devem-se examinar as condições em que essa responsabilidade é efetivamente exercida. E o que nos conduz, aqui, é uma discussão interessante sobre o próprio conceito de liberdade. Numa sociedade democrática, todos são livres. Consumir refrigerante, junk food e outros alimentos que não sejam saudáveis é uma escolha de cada um. Mas essa é uma imagem de liberdade muito equivocada. Amartya Sen (Nobel de Economia em 1998) define o desenvolvimento como “o processo de expansão das liberdades substantivas dos seres humanos”; e as palavras-chave nessa frase são “liberdades substantivas”. Liberdade não é ausência de restrição, como habitualmente se pensa. Liberdade é a presença de condições que nos permitam fazer escolhas compatíveis com uma vida que vale a pena ser vivida. A liberdade vista como ausência de restrições abre um espaço extraordinariamente grande para que os indivíduos tenham suas escolhas determinadas por instâncias sobre as quais eles não têm o menor poder e controle. E uma das questões sérias, hoje, do ponto de vista das lutas socioambientais, é que, quando se faz uma afirmação dessa natureza, vários segmentos empresariais acusam os que fazem tais afirmações de ter uma inspiração totalitária e ser contra as liberdades humanas e de imprensa.

O papel do consumidor é muito importante. Mas a relação entre empresa e consumidor não pode ser vista como uma relação na qual a empresa tenta fazer algo que ela sabe que é ruim, mas deixa para o consumidor decidir. E, se ele não comprar, aí a empresa muda. Essa é a lógica da velha economia. A visão do consumo consciente vem da ideia de criação partilhada de valor, ou seja, desde o início, em todas as etapas da cadeia, tem-se a intenção de que aquilo fará bem para as pessoas. Nos casos dos gêneros que preenchem a fantasia humana, mas eventualmente podem ser prejudiciais, isso tem de ser muito bem explicitado. Refrigerantes, por exemplo, não podem ser veiculados como alimentos de consumo cotidiano. É irresponsabilidade dizer que cabe ao consumidor resistir, e então a empresa vai parar de fabricar. Isso é uma ficção! John Kenneth Galbraith escreveu, aos 96 anos, um livrinho maravilhoso chamado A Economia da Fraude Inocente. A principal fraude inocente é a soberania do consumidor. Uma fraude porque os economistas e os cientistas sociais fazem com que as pessoas acreditem nisso; e inocente porque os próprios consumidores também acreditam. Portanto, o espaço de manipulação é imenso. A esperança é que, mais uma vez, os riscos empresariais nesse comportamento manipulatório são altíssimos. Então, as empresas começam a se dar conta de que os resultados e os danos desse comportamento vão lhes cair sobre a cabeça. Simples assim.

IS: Apesar de todo nosso gap educacional, você vê o Brasil com potencial para liderar no campo da inovação para a sustentabilidade?

RA: Acredito que temos uma situação extremamente privilegiada para exercer um papel muito construtivo de ordem internacional pautado por uma nova relação entre a sociedade e uso dos recursos ecossistêmicos, porque essa é a nossa grande riqueza. Quer dizer, é onde temos mais chance de contribuir de maneira original para a civilização. Nosso grande desafio está no uso sustentável da biodiversidade terrestre e aquática. O Brasil tem massa crítica do ponto de vista científico para avançar nessa direção, tem liderança empresarial para isso, tem uma compreensão social a respeito da importância da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos cada vez maior e, sobretudo, não está, como é o caso da Índia, China, África do Sul, da União Europeia, EUA, do Japão e Canadá, com a “faca no pescoço” em termos de matriz energética. Portanto, temos condições de fazer uma transição com pouso suave, enquanto, para esses outros países, o risco de uma aterrissagem catastrófica é imenso, em função da matriz energética. Ao mesmo tempo, outro grande desafio brasileiro é repensar as oportunidades de ganhos ligadas às formas convencionais e predatórias de exploração dos recursos, como corriqueiramente sempre aconteceu no chamado business as usual.  Como eles ainda são muito grandes, não se criou nas elites brasileiras uma coalizão social voltada a fazer da biodiversidade, da economia do conhecimento e da natureza a chave da geração de riqueza e de uma sociedade melhor. Esse é um desafio que temos pela frente. O segmento empresarial que pensa, concretamente, em gerir seus negócios nesses termos ainda é minoritário. A grande questão é saber se vamos conseguir fazer essa transição em tempo. Temos tudo para fazer, mas não há nenhum sinal de que vá acontecer. Pode ser que a gente perca o bonde… Mas o cavalo selado está passando na nossa frente.

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