Soluções – Tecnologia social

Soluções – Tecnologia social

Eficácia está na simplicidade
 
Os trinta quilômetros que separam Maranguape da capital cearense nunca representaram o principal empecilho para o acesso a hospital, remédios ou informação. Até mesmo porque, o município de 88 mil habitantes conta, segundo o IBGE, com 36 estabelecimentos de saúde, 29 deles públicos, onde trabalham 19 médicos, além de enfermeiros e auxiliares.
Mesmo assim, a taxa de mortalidade infantil preocupava as autoridades locais. Maranguape chegou a atingir índices de 36 mortes por mil crianças nascidas vivas, aproximadamente 21% acima da média nacional, que é de 29,6. A causa de cerca de 40% dessas mortes era diarréia, problema simples e barato de resolver. Então, por que os pequenos maranguapenses continuavam morrendo? Porque desprezava-se a ciência em nome da fé.
Em vez de recorrer à medicina, as mães solicitavam a visita de benzedeiras para atender seus filhos. Além de detentoras da confiança da população, sobretudo nos bairros mais pobres e na zona rural, elas somavam dez vezes mais do que o número de médicos da saúde pública local. E como lutar contra essa crença centenária mostrava-se difícil e ineficaz, decidiu-se, em 1999, incluir no trabalho das rezadeiras algumas atividades de agentes de saúde, preparando-as para operar o milagre da prevenção da diarréia por meio da aplicação oral do soro caseiro.
Elas foram cadastradas e treinadas para, além de rezar, ministrar o soro e ensinar as mães a dar continuidade ao tratamento preventivo. Em três anos de atividades do projeto “Soro, Raízes e Rezas” a mortalidade infantil em Maranguape caiu de 36 para 20 em cada mil nascidos vivos e o percentual de mortes por diarréia passou de 40% para 5%. A cultura foi preservada, as mães não precisaram deixar de confiar nas rezadeiras e estas, por sua vez, permaneceram muito ativas, só que mais eficientes. Apenas uma boa idéia? Não. Um exemplo prático de tecnologia social.
Simples, barata, integrada, fácil de ser reproduzida e continuada. Com essas características, as tecnologias sociais começam a ser compreendidas e a ganhar espaço entre organizações de terceiro setor, governos e empresas que investem em comunidades. Há um longo e árduo caminho a ser trilhado, principalmente por quem enxerga esta área de atuação com olhos da administração convencional de empresas.
Rompimento de paradigmas
 
Os paradigmas a romper não são muitos, mas tem raízes profundas. Enquanto a chamada tecnologia convencional olha para o mercado e visa lucro, a tecnologia social tem como meta o desenvolvimento humano. E para tanto, fundamenta-se em princípios muito particulares, como por exemplo, a transparência total no lugar do segredo industrial, o máximo aproveitamento do potencial humano em vez da redução permanente de mão-de-obra, e a cooperação em detrimento da concorrência.
Na tecnologia social, as técnicas e procedimentos precisam ser associados a formas de organização coletiva, que produzam, em larga escala, resultados positivos para a inclusão social e a melhoria da qualidade de vida. Têm de ser facilmente compreendidos e apropriados pela comunidade. Não podem exigir investimento financeiro de grande monta e devem possibilitar novas aplicações mediante adaptações às peculiaridades locais. É necessário que permitam ainda monitoramento e avaliação de objetivos. O exemplo das rezadeiras revela como esses conceitos podem ser desenvolvidos em uma ação extremamente simples.
O caso de Maranguape ilustra bem os elementos constitutivos da tecnologia social. As rezadeiras locais formam um grupo organizado, que se utiliza de procedimentos tecnicamente corretos e se reúne regularmente, com a coordenação do órgão estadual de Saúde, para discutir e avaliar o seu trabalho junto às mães e crianças. Sua atividade pode se multiplicar gerando resultados em escala, no Brasil e em qualquer lugar do mundo, ainda que a reza tenha versos e entonações diferentes. A produção do soro, por sua vez, é simples e barata. E o indicador de resultado – diminuição do número de mortes –, fácil de contabilizar em pequena e grande escala, não muda conforme o local de aplicação da tecnologia. A ação de “Soros, Raízes e Rezas” pode ser continuada mesmo sem a presença dos agentes iniciais de implantação.
Para Carlos Seabra, diretor de Tecnologia do Ipso – Instituto de Pesquisa e Projetos Sociais e Tecnológicos, a aplicação da tecnologia social pressupõe atuar em conjunto com o poder público, com a sociedade e, no caso de empresas, até com organizações que poderiam ser vistas como concorrentes. A complementaridade de recursos e competências deve ocorrer sem a preocupação sobre a paternidade da idéia, quem vai aparecer mais ou deter a patente. Esta é – segundo Seabra – uma barreira de natureza cultural a ser transposta no Brasil. “Sem rompê-la não se iniciará nenhum processo realmente transformador nem se alcançará a escala necessária para fazer frente à complexidade e ao tamanho de nossos problemas sociais. Colaboração é uma palavra-chave na tecnologia social e um elemento estranho na estratégia empresarial convencional”, explica.
Na avaliação do dirigente do Ipso, a produção de solução em escala, além da reaplicabilidade, diferencia a tecnologia social dos projetos e ações comuns no Terceiro Setor. Nesse sentido, ela deve estar afinada com alguma política pública. “Não dá para considerar tecnologia social um projeto que atenda dez crianças na Praça da Sé ou uma ação isolada que beneficie apenas uma pequena fração da comunidade. Observa-se hoje muitas ações positivas no País, mas que não mudam as estruturas nem representam solução impactante.”
De acordo com Seabra, a tecnologia social não incorpora necessariamente as sofisticações da ciência e tecnologia, mas também não as renega. “Em uma empresa, quanto menos mão-de-obra, melhor. O mesmo não ocorre com a tecnologia social. Um de seus objetivos é o envolvimento do maior número possível de pessoas. Essa diferença não transforma o produto ou processo automatizado em um vilão, um gerador de desemprego. Seria um raciocínio muito simplista”, avalia o diretor do Ipso. Envolver um grande número de pessoas não é um culto ao trabalho pelo trabalho, mas uma forma de desenvolvimento. Seu objeto é o crescimento humano e não o produto em si.
Para o especialista, a origem da tecnologia social está na associação do pensamento acadêmico à ação coletiva da comunidade. “O ser humano faz tecnologia social desde que começou a andar em duas pernas. Ele busca soluções locais como fez Robson Crusoé. O papel da academia é identificá-las e refiná-las. Assim, as comunidades são despertadas para o protagonismo e cada uma constrói o seu próprio caminho. Como resultado, espera-se uma conscientização que permita engajamento, autonomia e senso crítico na transformação da realidade.”
Organização em rede
 
No Brasil, empresas e instituições que adotam o conceito de tecnologia social começam a se organizar. Já existe uma Rede de Tecnologia Social (RTS) abrigando quase duas dezenas delas em torno do objetivo de disseminar a nova metodologia de ação social. “Buscamos a melhoria da qualidade de vida da população ao unir o conhecimento científico gerado nas instituições de pesquisa com o saber tradicional da comunidade”, diz Rodrigo Fonseca, do Finep, órgão de financiamento ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia e integrante da RTS. “Com o trabalho em rede, queremos que algumas dessas tecnologias se transformem em políticas públicas, algo que, felizmente, já vem acontecendo.”
Segundo Fonseca, a principal força da rede são o porte e a credibilidade das instituições que a compõem. “As ações implementadas consistem em resultado de um processo efetivo de discussão entre quem pode financiar e quem lida diretamente com os problemas sociais”, avalia. Em relação ao retorno para seus integrantes, o técnico da Finep inclui o acesso a informações sobre experiências práticas e a troca de apoios na hora de reaplicar uma tecnologia. “As empresas podem ampliar seu conhecimento sobre o tema e montar parcerias para melhorar a efetividade do seu trabalho social. Tanto empresas quanto entidades podem ainda, por meio da rede, financiar a reaplicação das tecnologias aumentando sua escala de implantação”.
Conceito em construção
 
Apesar de já existir uma rede de tecnologias sociais no Brasil, a discussão sobre o conceito e sua forma de aplicação encontra-se em estágio preliminar. Embora as bases sejam as mesmas, diferentes organizações e especialistas divergem no modo de implantá-las.
Diretor do Grupo Cherto, Marcelo Cherto, especialista em franquias e associado à RTS, defende essa técnica como a melhor forma de reaplicação de tecnologias sociais. Para ele, um franqueado social difere de um comercial apenas pelo fato de não pretender auferir lucros de natureza financeira por meio da operação de sua franquia.
“Estou envolvido na estruturação e implementação de diversas operações de franquia social. Nelas são empregadas as mesmas técnicas e ferramentas utilizadas para uma loja ou um restaurante. Constatei que é viável replicar, com sucesso, uma creche para crianças de famílias de baixa renda, uma unidade de alfabetização de adultos ou qualquer outra atividade sem fins lucrativos bem-sucedida”, afirma Cherto
Como exemplo de sua tese, o especialista cita o CDI – Comitê para Democratização da Informática , “uma idéia que nasceu no Morro Dona Marta, em 1995, e hoje está instalada em 1100 comunidades, inclusive fora do Brasil.” . Para Cherto, a franquia social “é uma das formas, talvez a mais efetiva de todas, pelas quais uma tecnologia social pode ser rapidamente disseminada, com um nível razoável de controle sobre a qualidade dos resultados obtidos.”
Segundo as premissas da franquia social, a organização que cria a tecnologia detém o conhecimento da implantação, operação e gestão de algum tipo de programa ou atividade. A entidade interessada em replicá-la – ONG, empresa, governo – deve se submeter a um monitoramento constante por parte da franqueadora para evitar distorções no processo e, consequentemente, queda de qualidade nos procedimentos e serviços. Na opinião de Cherto, “os resultados obtidos nas franquias sociais são bem mais consistentes do que nas outras formas de replicação de tecnologias sociais.”
Rodrigo Fonseca, do Finep, vê a franquia social como uma possibilidade de disseminação de tecnologias sociais, mas não a única nem a melhor. “É uma forma de ‘empacotar’ qualquer metodologia de solução de problemas sociais. Ela pode ou não ser utilizada em tecnologias sociais. Pela RTS, essa disseminação deve ser restrita àquelas que respeitam as delimitações do conceito e incluem ações de capacitação durante o processo”, avalia. Para o especialista, outra diferença entre organização em rede e franquia é a geração de sinergia entre seus integrantes. “Gerar sinergia significa utilizar os recursos existentes para produzir um resultado maior do que a soma das partes”, conclui.
Já Seabra, do Ipso, receia o risco da criação de patentes na replicação de soluções sociais. A franquia social é um exemplo “É preciso definir normas para impedir apropriações indevidas. Precisamos de um copyright social ou coisa do gênero que garanta a apropriação do saber social por todos sem restrições ou entraves.”
 

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