Intuição a serviço do bem comum

Intuição a serviço do bem comum

Líderes sustentáveis: intuição a serviço do bem comum

Ricardo Voltolini

Estou entre os que acreditam que a análise de realidades complexas, como a da sustentabilidade, e em especial da liderança para a sustentabilidade, não podem mais ser feitas com base em raciocínios simplistas. Muito menos a partir de teorias convencionais. É essa convicção que explica o meu interesse intelectual mais recente pelo Modelo Integral, uma teoria de pensamento que começou com Platão e a sua definição de bondade, verdade e beleza e, que mais modernamente, foi reinterpretada pelo filósofo americano Ken Wilber a partir da teoria dos quatro quadrantes.

Segundo Wilber, o conceito de integral pressupõe analisar a realidade com base em influências psicológicas (individual-interior), comportamentais (individual-exterior), culturais (coletivo-interior) e dos sistemas (coletivo-exterior). O fato é que, quando o assunto é sustentabilidade, por exemplo, tende-se a uma análise focada em apenas um dos quadrantes, o de sistemas e estruturas. Aspectos individuais como sentimentos, visões de mundo e experiências, assim como cultura, educação, imaginário, interações sociais e comportamentos são pouco considerados – seja como fatores de motivação ou como obstáculos. E, assim, perde-se profundidade.

Por conter variáveis em quatro dimensões, o Modelo Integral oferece contribuições importantes também para refletir sobre a liderança para a sustentabilidade. Nesse sentido, e procurando ampliar perspectivas já apresentadas no meu livro Conversas com Líderes Sustentáveis (Editora Senac-2011), socorro-me nas ideias de Barrett Brown, diretor executivo do Integral Sustainability Center e entrevistado da edição de março/2012 da revista Ideia Sustentável. Ao final de seu estudo de doutorado, Liderança no Limite: Liderando a Mudança a Partir da Consciência Pós-Convencional, Barrett estabeleceu 15 competências para líderes de sustentabilidade “com uma lógica de ação avançada”.

Não foi difícil enxergar algumas dessas competências nos dez líderes entrevistados para o meu livro. Cinco delas encontram-se num campo que, segundo o Modelo Integral de Wilber, está relacionado a um certo modelo mental, isto é, a um conjunto de características psicológicas e comportamentais específicas, dessas que não se ensinam nas escolas de negócio, mas se aprendem ao longo da vida.

Profundamente conectados e conhecedores de si próprios, esses líderes conjugam pensamento claro com engajamento emocional. Além da razão, utilizam a intuição como companheira na hora de tomar decisões. Para eles, sustentabilidade não é apenas uma “estratégia” pragmática ou uma “ferramenta”, mas um modo de transformar a si mesmos, os outros e o mundo. Mais do que a média dos líderes convencionais, lidam de modo pró-ativo com a incerteza inerente às mudanças de modelos de negócio porque confiam em si mesmos e se orientam pela força de suas convicções, valores e princípios.

E, por fim, combinam a boa e velha resiliência, que lhes protege contra a oposição quase sempre contagiante dos céticos e indiferentes, com uma interessante capacidade generalista de integrar diferentes perspectivas da sustentabilidade sem professar nenhuma delas em particular.

As histórias relatadas no livro ilustram muito bem cada uma dessas “competências.” Foi uma concessão à intuição o que se deu com Fábio Barbosa, no início dos anos 2000, então presidente do Banco Real, quando rejeitou os conselhos racionais de consultores e preferiu criar uma cultura de sustentabilidade não a partir da imposição de regras e estruturas, mas do fortalecimento da consciência de cada um dos funcionários e colaboradores do banco.

A respeito dessa decisão – vale ressaltar –, não havia à época nenhum benchmarking sobre o qual se debruçar, de modo que a experiência convencional de planejar utilizando elementos comparativos do passado não valia um vintém diante do desafio de “criar” o novo. Líderes sustentáveis são, em grande medida, criadores de futuro – e se entregam a essa tarefa, racional e emocionalmente, com alto nível de energia e determinação. Não surpreende, portanto, que vários deles, ao longo das entrevistas, tenham se referido à sustentabilidade como uma “causa” – mais do que profissional, uma causa de vida.

Intuitivo foi também o executivo cubano Héctor Núñez, em 2008, então CEO do Walmart, ao criar um personagem – o Capitão Água – e incorporá-lo, com capa e tudo, numa convenção para milhares de funcionários. A maioria esmagadora dos presidentes que conheço sequer pensaria na hipótese de tal nível de exposição – por timidez, excesso de zelo ou receio de virar objeto de assunto jocoso na rádio-peão. Núñez agiu movido pela convicção de que a superexposição nesse nível de simbologia era a forma mais eficiente de mexer com o imaginário da tropa. E, assim, comunicar o valor da sustentabilidade para um grupo de colaboradores de baixa escolaridade.

Se utilizasse apenas a “antena” racional, seguindo a cartilha do business as usual, o mais provável é que Paulo Nigro, presidente da Tetra Pak para o Brasil e América Latina, não tomaria a decisão que tomou, em 2009, no auge da crise econômica. Àquela altura, com o preço do papel em queda no mercado internacional – e, por tabela, o de reciclados idem –, as cooperativas de catadores, criadas e apoiadas pela empresa, poderiam se romper por falta de compradores e preço justo, devolvendo à mendicância os recém-empoderados profissionais da reciclagem.

Nigro assumiu o compromisso e, claro, os custos não planejados de estocagem do material reciclado por um período de meses, o que garantiu não só a sobrevivência das cooperativas mas o seu fortalecimento com base em elos mais sólidos e tonificados pela confiança. Quantos líderes agiriam assim? Desconfio que poucos.

Quem conversa com Guilherme Leal, cofundador da Natura e hoje copresidente do seu Conselho de Administração, percebe muito rapidamente que a sustentabilidade não representa uma estratégia, construída “de fora para dentro”, pragmaticamente, como resposta ao que “demandam” o “mercado” ou o “consumidor.” Na visão de Leal, o conceito expressa um modo de ver, perceber e se relacionar consigo próprio, com os outros e com o planeta, baseado na noção de interdependência. É intrínseco.

Nele, como nos demais líderes sustentáveis, a referência a esse conceito sistêmico não soa como um mantra insosso. O líder sustentável é alguém que “lidera com valores”. E liderar com valores tem mais a ver com a dimensão do “saber ser” do que a do “saber fazer”.

Foi isso o que extraí de conversas com José Luciano Penido (Fibria), Franklin Feder (Alcoa) e Luiz Ernesto Gemignani (Promon). Gestor sensível às relações interpessoais e um catequizador paciente, Penido tem se dedicado à tarefa de criar a cultura do “lucro admirado” na nova geração de líderes da Fibria, utilizando o mesmo método que Feder, da Alcoa, adotou para edificar em Juruti (PA) uma das experiências mais sustentáveis de mineração de bauxita no mundo: ouvir, com a humildade de quem aprende, o que pensam os públicos impactados pelo negócio. Não se trata aqui de ouvir por ouvir, como muitas empresas fazem nos seus protocolares painéis de stakeholders. Mas ouvir com respeito, de um modo emocionalmente engajado, sem antagonismos, enfrentando de cara limpa a essência dos conflitos, valorizando as diferenças e construindo as conexões necessárias para operar em harmonia com as comunidades e o meio ambiente. Capacidade de se conectar é uma competência perceptível entre os líderes consagrados no tema.

Líderes sustentáveis são, como bem exemplificou Gemignani, da Promon, mais jardineiros do que comandantes militares. São indivíduos cujo perfil se caracteriza por profunda compreensão humana, orientados por propósitos e causas, movidos mais por aspirações do que ambições.  E eles estão em todas as organizações, nas mais diferentes posições e estratos hierárquicos. Felizes daquelas que, com um olhar integral, souberem criar as condições para a sua semeadura.

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