Entrevistas – Sem um sistema público moderno, capaz de cumprir bem as suas funções, não há terceiro setor e mercado que funcionem direito (parte 1)

Entrevistas – Sem um sistema público moderno, capaz de cumprir bem as suas funções, não há terceiro setor e mercado que funcionem direito (parte 1)

À frente do Viva Rio, o historiador e antropólogo Rubem César Fernandes é um analista contumaz das mazelas urbanas do País. Coordenador de diversos programas junto a comunidades pobres no Rio de Janeiro, militante de primeira hora na luta pelo desarmamento, Fernandes aponta a incompetência do Estado como uma das principais responsáveis pela desigualdade e a violência que enfrentamos hoje.
Como exemplo, cita a incoerência entre a ação da polícia e as necessidades da população quanto à segurança. E acusa a má estrutura do ensino público de contribuir mais para a evasão escolar do que o tráfico de drogas ou a necessidade de o jovem ajudar no sustento da família. Para o antropólogo, o primeiro setor brasileiro é como uma máquina ultrapassada e sem comando, um navio sem capitão e com o casco cheio de buracos. O descrédito é tamanho que, em recente pesquisa nas favelas cariocas, a classe política ganhou nota mais baixa do que a polícia.
Rubem César Fernandes, 62 anos, é graduado em História (Universidade Federal do Rio de Janeiro), mestre em Filosofia (Universidade de Varsóvia, Polônia) e PHD em História do Pensamento Social (Universidade de Colúmbia, nos EUA). Autor, entre outros livros de Privado, porém Público (Relume Dumará, 1996), é também secretário-executivo do Iser –Instituto de Estudos da Religião.
Confira, nesta entrevista, o que ele pensa sobre o Brasil e os seus mais graves problemas sociais.
 
Idéia Social – É possível elaborar um ranking dos principais problemas sociais do Brasil?
 
Rubem César Fernandes – Não. Eles estão todos interligados e tendem a se reforçar mutuamente. O fato é que vivemos uma enorme inércia em relação ao nosso quadro de desigualdades sociais. E a tendência é a reprodução dessas desigualdades, na medida em que o Estado não se mexe. Fica muito difícil estabelecer, portanto, uma classificação fechada. Em cada momento, um determinado fator social pode ocupar posição diferente. Pode-se ter dinâmicas que reproduzam uma situação na forma de ciclo vicioso, bem como outras nas quais um único fator contamina o conjunto positiva ou negativamente. A violência, por exemplo, é um importante inibidor de dinâmicas positivas.
Ela desestimula investimentos, atrasa o desenvolvimento e prejudica o funcionamento regular das instituições. O agravamento da violência na favela da Rocinha levou a uma grande perda econômica. Muita gente mudou de bairro e estabelecimentos comerciais foram fechados. Quem tinha interesse de investir lá desistiu, iniciativas locais da própria comunidade sofreram processo de retração. O Viva Rio tem um programa de microcrédito no bairro que registrou queda de 15% a 20%. Com a violência, desaparece também o investimento governamental. Obras como as de saneamento em que se precisa entrar muito fundo na estrutura da comunidade deixam de acontecer por causa do ambiente inseguro.
Este conjunto de perdas, por sua vez, reforça o ciclo vicioso e favorece as condições para o aumento da violência.
 
IS – Segundo o seu ponto de vista, pode-se concluir então que onde há um problema social, estão todos os demais?
 
RCF – De certa forma sim. O caso da violência é emblemático. A experiência do Viva Rio tem nos mostrado isso: sempre que debatemos ou fazemos uma ação focada no tema violência, todos os outros problemas surgem no encalço. É uma teia intrincada de relações de causa e efeito. Promover mudanças realmente importantes requer ações integradas. O projeto Favela Bairro é um bom exemplo. Pioneiro no esforço de colocar as favelas no centro de uma política pública, ele não consegue, por sua vez, ter efeito generalizante no desenvolvimento local. Em grande parte, isso ocorre devido à questão da insegurança. Agrava ainda o fato de não haver integração entre as duas esferas do Poder Público. Urbanismo e segurança não se casam. Município e Estado não se falam e até se opõem. Deste modo, locais já urbanizados continuam apresentando elevados índices de violência. É também o caso do complexo da Maré, no subúrbio carioca. Após ser submetido a vários processos de urbanização, hoje é uma favela plana, com ruas bem desenhadas de largura que permite trânsito de ônibus e caminhões. Lá as pessoas pagam IPTU, as ruas têm nome, as casas têm número e, no entanto, segue sendo um dos lugares mais violentos do Rio de Janeiro.
 
IS – Se a estrutura que poderia ser um fator de inibição da violência não chega por causa da própria violência e quando consegue chegar não produz resultados concretos, existe um caminho?
 
RCF – Evidentemente o caminho é o da integração dos diferentes organismos da administração pública nas duas esferas. O problema é que os instrumentos de governo para trabalhar a violência estão baseados nos órgãos de segurança, absolutamente desestruturados para enfrentar esse tipo de questão. Nossas organizações são muito antigas. A polícia militar, por exemplo, foi criada no final do século 19. É tradicionalista, muito centralizada, com cultura organizacional forte. Está organizada em batalhões que cobrem grandes áreas onde se tem, em cidades como o Rio, favelas e classe média, com problemas distintos. Para piorar, quanto mais novas e mais pobres as regiões urbanizadas, mais rarefeita a presença das instituições públicas.
Com a estrutura atual, a polícia perde a sua funcionalidade. Muitas das nossas instituições são anteriores a fenômenos como os da urbanização, da informática e do narcotráfico internacional. Não têm bom desempenho porque não incorporaram devidamente os novos aspectos da realidade.
 
IS – Reformar a instituição policial é o primeiro passo para reduzir a violência?
 
RCF – Só se consegue minimizar a violência nas favelas e em comunidades similares, incorporando-as à cidade em todos os sentidos, inclusive sob o ponto de vista da segurança pública. É necessário haver no interior das favelas as mesmas unidades de policiamento 24 horas observadas nos bairros de classe média, com presença ostensiva e notada pela população. Paralelamente, as comunidades mais pobres precisam integrar a agenda dos investimentos públicos. É temerário que fiquem à deriva, pois acabam vítimas de dinâmicas com tendências anárquicas, como as que caracterizam facções do crime organizado. Falar em crime organizado, aliás, é um certo exagero. Ao contrário do que pensa a sociedade, essas facções estão longe de serem organizadas, não têm a hierarquia que se imagina e vivem em disputa de poder com outros grupos e internamente. O seu espaço é mutante, instável e com lideranças locais muito autônomas. No entanto, as iniciativas de segurança reagem a esses confrontos de forma mal planejada e acabam involuntariamente fazendo parte da disputa de poder, o que aumenta o clima de insegurança.
 
IS – Como conter essa dinâmica?
 
RCF – É muito difícil. A inércia e a resistência às mudanças no esquema de segurança estão desperdiçando gerações de policiais. Felizmente – e esta é uma ótima oportunidade para a mudança – predomina a idéia de que precisamos de uma polícia mais eficiente, mas também muito mais próxima da comunidade. Se, no entanto, demorarmos muito para colocá-la em prática, deixando de aplicar um novo conceito de segurança, podem ressurgir correntes de pensamento mais duras, que levem à desmoralização dos direitos humanos. Além da reforma policial, são necessárias políticas sociais contra a violência focadas nos jovens, um grupo, sem dúvida, de maior risco.
A realidade atual exige uma reforma institucional.O gerenciamento da segurança pública precisa torná-la mais ágil, mais próxima do local em que atua, com comandos mais jovens, e estruturas horizontalmente mais bem distribuídas. Em São Paulo, tem uma experiência interessante de integração entre as polícias civil e militar. A área de atuação de uma divisão da polícia militar coincide com a de uma delegacia da polícia civil. Como há muito mais delegacias que batalhões, foi possível fazer um trabalho integrado em unidades menores. Com esta medida, aumenta-se a quantidade de unidades militares.Como não há coronéis para gerir todas, o comando de cada uma delas acaba ficando a cargo de um oficial de menor patente – um major, por exemplo –, mais jovem e mais sintonizado com a realidade atual. Deste modo, as relações tornam-se mais locais e o comando desenvolve um conhecimento mais aprofundado da área em que trabalham suas equipes, alcançando resultados melhores.
 
IS – Como as grandes cidades brasileiras chegaram a esse caos social? Em que ponto do trajeto o nosso modelo de desenvolvimento saiu dos trilhos?
 
RCF – A América Latina viveu um processo de urbanização muito acelerado a partir dos anos 70. Fenômenos como os de ocupação desordenada, surgimento de megacidades e formação de grandes conglomerados urbanos vieram acompanhados de falta de infra-estrutura, de logística e de integração. É o que eu chamo de dinâmica selvagem de urbanização. Ela foi rápida e criou um ambiente propício para o desenvolvimento de todos os problemas atuais.
No Brasil, além do mais, observou-se um crescimento econômico notadamente no período da ditadura militar. Mas este crescimento não beneficiou a maioria dos brasileiros. Também neste período, questões como o desenvolvimento, as desigualdades sociais e a integração foram deixadas de lado. Símbolo do poderio econômico, as cidades tornaram-se cada vez mais atrativas, mas as oportunidades nunca se abriram para todos.
Para completar o quadro, o Estado não acompanhou a evolução da sociedade. Mudou a vontade política, mas não os instrumentos. E – todos sabemos – é impossível governar sem as ferramentas certas, apenas com a vontade. Desde a ditadura, o governo vem tentando se reestruturar, sem sucesso. A pequena evolução observada não se deve a nenhum tipo de estratégia, dinâmica ou proposta positiva. Fomos conduzidos sempre por dinâmicas negativas, como, por exemplo, a inflação.
 
IS – Nosso processo de democratização foi incompetente?
 
RCF – Vivemos um processo complicado de democratização. O próprio sistema eleitoral inviabiliza muitas ações integradas. Temos democracia eleitoral, mas não governo democrático. Eleições a cada dois anos em alguma instância não permitem governança. Mal o governo sobe ao poder e já está envolvido em outra eleição. As parcerias entre as esferas federal, estadual e municipal ficam inviáveis. Na prática, essa quebra se dá até antes porque já no ano anterior ao pleito as cabeças estão voltadas para ele. O que se consegue fazer em termos de políticas públicas em menos de dois anos? Nada.
Se por um lado o estado é inerte, não se moderniza, permanece no mesmo formato, por outro é uma instituição altamente instável. A todo momento mudam-se as prioridades as ações e as marcas. No Brasil o Estado virou uma fonte de instabilidade. E isso não tem qualquer relação com democracia. Pode-se até chamar de democracia perversa. E a cada momento entram novos fatores que contribuem para este desequilíbrio.
 
IS – Que novos fatores são esses?
 
RCF – São tantos que é até difícil quantificar. Diante da profusão deles, tentamos focar a atuação do Viva Rio em alguns temas, como a presença das armas no dia-a-dia da sociedade. A arma representa um ponto de desequilíbrio em qualquer conflito social. Parte do seu comércio e circulação é legal e registrada. Uma outra é informal, sem nenhum controle. E uma terceira é criminal. O informal e o criminal se comunicam muito, não só no comércio de armas como na pirataria ou em qualquer outro negócio. A informalidade não constitui uma alternativa à legalidade, mas um caminho para a criminalidade.
As redes ilegais e informais funcionam em circuitos regionais, nacionais e internacionais. No Mercosul e países vizinhos, a grande produção de armas está localizada no Brasil e na Argentina, mas os produtos circulam em outros lugares como Paraguai e Bolívia. Esse comércio informal e criminoso se comunica com a rede de produção e comércio das drogas do mundo andino. E atravessa as fronteiras junto a outros comércios ilegais como de carros e cargas, entre outros.
Muita gente pensa que o comércio ilegal prefere as fronteiras que só existem no mapa, como as da Região Amazônica. Isso não é verdade. Ele também está aqui correndo solto nas fronteiras secas e asfaltadas, pois o fluxo do transporte é mais simples do que em regiões só de rios e florestas por menos vigiadas que sejam. Armas e drogas chegam pelas estradas comuns também.
 
IS – Se todos os fatores estão interligados, ações sociais focadas não correm o risco de resultarem ineficazes?
 
RCF – Não creio. Retomo a questão das armas, para exemplificar. O primeiro desafio é isolá-la como vetor, transmissor e multiplicador, da violência, seu principal símbolo. A arma agrava e potencializa a violência. Mas evidentemente não constitui o elemento causador. A rigor, as causas da violência são múltiplas, integram uma cadeia de problemas inter-relacionados que incluem pobreza, ausência de infra-estrutura básica, demografia, sistema educacional e desestruturação familiar, entre outros. Difícil enfrentá-los todos ao mesmo tempo. Diante disso, parece-me inteligente adotar a mesma estratégia utilizada na saúde pública: quando não se pode controlar as causas, o melhor a fazer é controlar os vetores. Claro que as ações não devem ficar concentradas somente no combate aos vetores sob o risco de produzirem soluções ineficazes.
No caso das armas, o referendo será um momento de debater não apenas a sua oferta no Brasil, mas como os diferentes segmentos da sociedade vêem a questão da segurança. Segundo estudo do Iser – Instituto de Estudos da Religião, há no Brasil cerca de 17,5 milhões de armas. Cerca de 10% delas estão nas mãos do Estado. No mundo, a média é de 40%, o que já nos coloca em situação complicada. Os outros 90% das nossas armas estão espalhados na sociedade. Nesse primeiro momento, precisamos estancar o incremento desse mercado. O desafio seguinte, mais complicado, é o de reduzir a demanda por armas e munição, atuando na criação de políticas de segurança humana, não só policiais, mas também sociais.

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